Segunda vila fundada na Capitania de São Vicente, Mogi das Cruzes
teria tudo para reunir, em seu perímetro, verdadeiros tesouros
históricos. De toda ordem: arquitetônico, musical, arte sacra,
documental, iconográfico. Teria, não fosse o absoluto desleixo ao qual
se relega, desde sempre, aquilo que lhe poderia fazer a diferença.
Escapam da regra ações ligadas à Igreja Católica, instituição
responsável, em primeira instância, pela própria fundação do aglomerado.
O “desde sempre” do parágrafo anterior não é força de expressão: a
certidão de nascimento da Cidade, identificada pelo seu foral de
elevação a vila, perdeu-se menos de 100 anos depois do 1º de setembro de
1611. Tanto que, em 11 de maio de 1748, o juiz ordinário Manuel
Rodrigues da Cunha mandou reconstituir o processo.
Quando do tombamento das igrejas do Carmo de Mogi das Cruzes (final
da década de 1960, início da década de 1970), a proximidade entre
funcionários do Instituto do Patrimônio Histórico e Geográfico Nacional e
gente da Cidade acabou permitindo que a documentação da vila fosse
enviada a São Paulo para restauração. Como ocorre com tudo aquilo que
não tem dono – nem responsável – o tesouro ficou por anos esquecido; foi
devolvido no início da década de 1980. Mas não completo. E, como quem
enviou não foi quem recebeu de volta, parte importante da documentação
acabou ficando nos escaninhos da delegacia paulista do Iphan.
Foi só o acaso que permitiu a retomada de um conjunto de partituras
sacras das mais valiosas, enviadas junto com o Foral da Vila. Aconteceu
em 1998: um pesquisador, consultando os alfarrábios guardados em São
Paulo, localizou aquilo que hoje é reconhecido como o “Grupo de Mogi das
Cruzes”. Sabendo da propriedade, o pesquisador consultou o Departamento
do Patrimônio Histórico solicitando autorização para sua reprodução.
Uma extenuante peregrinação permitiu a retomada do tesouro que o Iphan
alegava ter recebido como doação, mas não conseguiu apresentar o
documento de posse.
PERGUNTA-SE: onde estão hoje o Foral da Vila e as partituras do “Grupo de Mogi das Cruzes”?
Não é diferente o destino incerto que se deu a dois tesouros,
verdadeiras relíquias preservadas por muitos anos: são duas bandeiras,
uma do século 18, outra do século 19. A mais antiga, que se tem como da
Câmara Municipal de Mogi das Cruzes, é em seda vermelha. A outra,
bordada em ouro sobre damasco, tem o escudo de armas do Império sobre um
quadrilátero cor de ouro, colocado no centro de um paralelogramo verde.
As franjas são amarelas e era tida como a única de seu tamanho em São
Paulo. Fora esquecida por estas bandas pela comitiva do imperador Pedro I
por ocasião de uma de suas passagens pela localidade quando empreendia
périplos entre Rio de Janeiro e São Paulo de Piratininga.
Por dezenas de anos as duas bandeiras, fixadas em vitrines, estiveram
expostas em salas nobres da Prefeitura local. Há vários registros
disso, como nas fotos que mostram recepção do prefeito Chico Lopes ao
governador Lucas Nogueira Garcez (início da década de 1950) e da posse
do prefeito Maurílio de Souza Leite (início da década de 1960). Também a
que ilustra esta página, datada do início da década de 1950. Até mesmo o
prefeito Waldemar Costa Filho, declaradamente reticente no que dizia
respeito às questões culturais, as manteve por onde passeou pelo cargo:
no casarão da Rua José Bonifácio, na antiga Caric da Avenida Pinheiro
Franco, nas instalações do Lions Club na Praça Norival Tavares e no
prédio que mandou construir no Centro Cívico. Dali as bandeiras saíram
durante os dois mandatos de Junji Abe (2001-2008). Para onde?
PERGUNTA-SE: onde estão hoje as duas bandeiras dos séculos 18 e 19, tesouros históricos da Cidade?
Por cerca de 60 anos, o jornalista e historiador Isaac Grinberg
manteve, em permanente atualização, um valioso acervo iconográfico e
documental sobre Mogi das Cruzes. É de sua autoria a mais acalentada
bibliografia sobre a Cidade. Seu primeiro livro – “História de Mogi das
Cruzes” (1961) – é indispensável para o entendimento e a consulta do
passado local. A maior parte deste texto foi pesquisada em livros de
Isaac.
Quando da morte do historiador (2000), sua família doou a maior parte
do acervo à Prefeitura de Mogi das Cruzes, que assumiu o compromisso de
preservação e exposição do tesouro. A Prefeitura então criou, no papel,
o Arquivo Histórico que leva seu nome. No papel, já que, desde então, a
página oficial da internet informa que “no momento, o acervo está
passando por um sistema de organização e troca de suportes de
acondicionamento e a preparação de documentos para acesso via Internet. A
política de reprodução a ser implantada será a da utilização de
microfilmagem, digitalização com câmeras fotográficas e, em casos
especiais, a utilização de scanners.” Nesta Cidade sempre houve momentos
que costumam ser demorados. Como se vê, continuam havendo
PERGUNTA-SE: onde estão as fotos e documentos integrantes do acervo de Isaac Grinberg?
Oscar D’Ambrosio, um dos mais respeitados críticos de arte do País,
diz sobre o patrimônio da Cidade: “Quando se pensa na pintura, Mogi das
Cruzes oferece um panorama que é o mapa do próprio Céu. Não é outra a
sensação ao ver, no forro da nave da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, o
Êxtase de Santa Teresa e Nossa Senhora do Carmo entregando o
escapulário a São Simão Stock, obras atribuídas, respectivamente, a
Manoel do Sacramento e a Antônio dos Santos. O mesmo fascínio ocorre ao
contemplar a autoridade, ao mesmo tempo, solene e bem humorada de Santo
Elias, na tarja do forro da capela mor da Igreja de Nossa Senhora do
Carmo”.
Aí se chega à constatação de que, excetuado o destino que se deu aos
dois altares laterais que ornavam a antiga Igreja Matriz, estão com os
católicos as ações mais responsáveis de preservação dos tesouros locais.
Exceção: quando ruiu a velha Matriz, em 1952, um dos altares foi
transferido para a paróquia Nossa Senhora do Brasil, em São Paulo. O
outro? Sabe-se lá.
Em 1970 o primeiro bispo de Mogi – dom Paulo Rolim Loureiro – criou o
Museu de Arte Sacra e o abrigou nas igrejas do Carmo, patrimônio
histórico tombado pelo Governo Federal. Ali há mais de 100 peças de
valor incalculável e o acervo é tido como um dos mais representativos
conjuntos do gênero do País, à exceção daqueles preservados pelo
circuito histórico de Minas Gerais.
Outro tesouro local, este preservado – mas longe de ter a garantia de
sua eternizaçao – é o Casarão do Chá. Segundo o crítico Jotabê
Medeiros, “não existe nenhuma outra construção como o Casarão do Chá no
Brasil. Construído pelo mestre-carpinteiro japonês Kazuo Hanaoka em 1942
(ano em que o Brasil rompia relações diplomáticas com o Japão), é o
único exemplar da arquitetura japonesa no País tombado pelo patrimônio
histórico.” O prédio, que abrigava uma fábrica de chá no Cocuera, não
tem um prego ou parafuso, apenas encaixes que garantem a sustentação da
madeira. Vai para 10 anos que se construiu um galpão de proteção ao
prédio, 20 anos depois do tombamento.
Da mesma forma a Cidade parece ignorar por completo os artistas que
passaram por aqui e legaram obras diretamente vinculadas a ela. Há
exemplos como Chang Daí-Chien, Alfredo Volpi, Mário Zanini, Barros o
Mulato – e tantos outros.
Não importa a seara, o costume de esconder o que seja sob o tapete
segue impecável: há 70 dias (15 de março), o murmúrio de mais de 100
manifestações em uma rede social da internet fez a Prefeitura de Mogi
fechar com tapume e cobrir com lona o que restava da “Casa da Bala”,
desapropriada sob a alegação de interesse cultural na Rua Coronel Souza
Franco. Hoje, o tapume e a lona seguem como dantes. Impecáveis, sem
telhado.
Por Chico Ornellas
O Diário de Mogi
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