Como publicamos anteriormente os comentários do Mons. Prof. Daniel Estivil, da Pontifícia Universidade Gregoriana e a introdução e comentários do S. Ex. Card. Antonio Cañizares Llovera, Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto Divino sobre o Livro de Rodolfo Papa entitulado: "Discursos sobre arte sacra" (Edições Cantagalli 2012), apresentamos hoje mais uma reflexão sobre o livro:
Reflexões sobre o mais recente livro de Rodolfo Papa
Por Tommaso Evangelista*
ROMA, (ZENIT.org)
A
leitura da inseparável relação entre arte e fé e a análise das
dinâmicas contemporâneas lançam nova luz sobre o hodierno sistema da
arte e sobre a essência mais profunda da pintura, propondo uma saída e
uma ajuda à liturgia.
Há pessoas que passam uma vida colocando livros em uma biblioteca e outras que colocam uma biblioteca inteira em um livro. Discursos sobre arte sacra (Edições Cantagalli 2012) de Rodolfo Papa se coloca nesta segunda categoria e é efetivamente uma summa
do sistema da arte colocada ao serviço da arte sacra autêntica. Papa
colocando a bom uso a rica experiência de vinte anos amadurecida em
qualidade seja como historiador da arte, seja como artista e passeando
entre filosofia, história, teologia e crítica de arte, tendo sempre como
sólidos pontos de referência os textos do Magistério, cumpre um estudo
tão singular como indispensável. Singular porque dificilmente, na
hodierna literatura sobre a arte, se encontra um volume que funde com
lucidez uma leitura da condição atual com uma redescoberta, e
atualização, dos escritos do passado; indispensável porque, evitando a
estrada de redefinições intermináveis da arte prontas a partir dos
saberes particulares, evitando assim ulteriores fragmentações teóricas,
busca sair do relativismo presente para propor estáveis e lógicos
modelos de referência . A estrutura escolhida para analisar tal complexo
sistema é aquela do discurso, como gênero literário e forma
expressiva, que permite a focalização sobre diversos pontos e
simultaneamente o avanço para um objetivo final que é a definição dos
fundamentos da arte sacra. O vários capítulos afrontam diversas questões
particulares e compreendem reflexões teóricas e exempla
traçadas pela história da arte e que ajudam a contextualizar e definir
os raciocínios.
Grande atenção é reservada ao esclarecimento dos termos
lingüísticos essenciais, indispensáveis na economia da análise, enquanto
o uso abundante de citações, não como simples referências, mas como
indicações funcionais ao texto, permite acompanhar a relação entre
escrita e imagem na história do cristianismo e por outro lado conhecer
os textos contemporâneos de estudiosos que, embora longe do
cristianismo, chegam a intuir a solução do problema.
O objetivo do texto é definir a arte sacra e suas propriedades
intrínsecas em uma época que não só perdeu o conceito de arte,
tornando-o subjetivo e fluído, mas também a noção do Sagrado, uma
verdadeira e real apostasia, para a qual Papa caracteriza origens e
consequências. Assim pensando, o autor chega a propor uma definição
geral, extraída de textos clássicos, que não apresenta como dogma, mas a
insere na hodierna especulação demonstrando como é possível ainda
refletir em termos positivos sobre o estatuto epistemológico da arte: ars est recta ratio factibilium.
Esta enunciação é a premissa para a descoberta de pelo menos quatro
características fundamentais da arte sacra (de modo especial da arte da
pintura): universalidade, beleza, figuratividade e narratividade.
Papa no Discurso sobre Artes, muito inteligentemente, depois
de analisar diversas contribuições de teóricos e críticos atuais
(Warburton, Shiner, Danto, Belting, Didi-Huberman), mostrando as
dificuldades em chegar a instruções estáveis e abrangentes, oferece a
célebre frase de São Tomás, para a qual a arte é a correta razão das
coisas a serem feitas (“recta ratio”) e declina ao plural o
problema: "se o termo arte é declinado ao plural como um gênero que
compreende várias espécies, o problema da sua definição aparece
resolúvel, também nas situações contemporâneas". Nesta ótica, as
"espécies" da performance ou das instalações ou ainda da body art terão
necessidades de um próprio estatuto e de regras peculiares que alguém
deverá fornecer e assim garantirão, por diversidade, a identidade e a
sua definibilidade, por exemplo pintura, e a possibilidade de afirmar o
que é arte e o que não é. Observando o sistema deste ponto de vista,
além disso, a chamada arte "contemporânea" com seus rituais de produção e
fruição aparece agora cristalizada e a aparente multiformidade se
demonstra já codificada e globalizada pelo mercado que, a partir da Pop
Art, é expressão vazia desta aparente criatividade.
Naturamente nem todos os gêneros podem estar a serviço da Igreja e
com cautela Papa muitas vezes em vários capítulos detem-se sobre
intrínsecas diferenças e seus perigos. Revivals diatópicos e
diacrônicos, utópicos e ucrônicos, a recuperação do "pensamento
selvagem" e de um primitivismo original, instâncias liberais, libertinas
e neo-pagãs, a busca do irracionalismo e do esoterismo são estradas
buscadas do Iluminismo em diante com o objetivo de introduzir formas
criadas por diferentes sistemas de arte para arrombar a estrutura do
interior e discristianizar a arte. Diferente da recuperação da cultura
greco-romana no Renascimento, que buscou cristianizar os elementos
pagãos, o anacronismo próprio de diversas vanguardas históricas não tem
relações com a Igreja, e usa de uma cultura arcaica e uma visão
distorcida do sagrado.
Interessante e original, o Discurso sobre a luz mostra como
na arte contemporânea se passou "de uma visão metafísica a uma
materialista» também por culpa do abandono e/ou do excesso de luz. Se em
pintura a claritas, a clareza e esplendor, cede lugar às
cores, ou à matéria que não comunica mais visões celestes mas sempre
mais se aproxima à baixeza do homem, em arquitetura acontece o contrário
e o excesso de limunosidade conduz a uma desmaterialização que rejeita a
dimensão criatural da realidade.
Indispensável, o Discurso sobre imagens e sobre o corpo
parte de um paradoxo: enquanto se vive em uma "sociedade da imagem" a
imagem (e o corpo) muitas vezes estão ausentes também no ambiente
litúrgico, onde mais do que nunca é reivindicada a sua presença enquanto
a religião cristã começa propriamente com o encontro com a corporeidade
de Cristo, de Deus feito homem.
A única imagem que se aceita bem atualmente é aquela tecnológica que
tem efeito muito menos dispendioso. A imagem revestida ou manufaturada,
tecnicamente perfeita ("Photoshapada"), fala-nos de um mundo que perdeu a
busca de uma experiência interior, que rejeita a complexidade e a
abertura que apenas uma arte que visa superar os limites de imitação
pode garantir. Nesta ótica deve-se rejeitar a fotografia, enquanto
invasão excessiva do real que anula a mediação pessoal e de consequência
o hiperrrealismo: diferente da prospectiva criada para representar o
mundo e as histórias sagradas, educando o senso de visão, a imagem
hodierna aparece desencarnada e não adequada à devoção.
É fundamental a recuperação da beleza que Papa considera nos termos
ontológicos de "transcendente": a beleza é a perfeição, harmonia e
esplendor (integritas, proportio e claritas)
e está associada à bondade e ao bem. A beleza transcende o homem e é
capaz de lhe revelar algo da realidade, neste sentido comunica também a
verdade; o homem, por sua parte, é naturalmente inclinado a acolhê-la e a
encontrá-la. Também a arte, especialmente se serve à liturgia, não pode
prescindir da beleza, dado que as obras de arte sacra devem expressar a
infinita beleza divina e levar as almas para Deus. Eu recuso assim as
atuais concepções relativistas de beleza (beleza como ausência, como
desarmonia, como estranheza) ou as estéticas do feio, porque, como não
existe um mal absoluto, porque mal é a falta de um bem, assim, não pode
existir nenhuma feiúra absoluta que é a perda do belo ou o seu não
perfeito desenvolvimento.
O discurso sobre arte sacra é a conclusão dos discursos
precedentes porque evidenciar a centralidade das imagens sacras
apresenta-se cada vez mais fundamental em uma sociedade "líquida" e
"neotribal" que perdeu qualquer ligação com o transcendente. Como
escreveu Joseph Ratzinger a crise de arte é um "sintoma da crise
existencial da pessoa" e, portanto, colocar alguns pontos certos em um
momento tanto confuso não é senão um fator positivo. O capítulo é muito
complexo e explicativo graças à referência constante aos textos do
Magistério dos quais emerge claramente como a arte deve celebrar a
infinita beleza divina colocando-se ao serviço da liturgia, iluminada
pela fé, evitando simbolismo excessivo e o realismo exagerado.
A Arte Sacra, ao contrário das mais variadas expressões criativas que
parecem durar o tempo de exposição em um contexto saturado de novidades
e provocações, é sempre viva e se renova continuamente no sulco da
Tradição. Dadas aquelas características fundamentais e imprescindíveis: a
universalidade, a beleza, a figuratividade e a narratividade, a
liberdade do artista (de fé) é muito ampla. Papa, um verdadeiro artista
ao serviço da Igreja, nos mostra com este texto que há estradas ainda
transitáveis e como é irracional falar de "morte da arte". E também no
hipotético caso que todo este saber venha a cair e que a dimensão do
sentimento, do instinto, da arbitrariedade substitua o relacionamento
fecundo entre Fides e Ratio. Citando o parágrafo A arte na espiritualidade
em referência à imagem da Divina Misericórdia, é confortante saber que
há um Outro, além das críticas e teorias, que continua a se comunicar
através das imagens.
*Tommaso Evangelista é historiador e crítico de arte, jornalista cultural, especialista em didática de museu.
[Tradução Ir. Patricia Souza, pmmi]
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