Fratres in Unum
IHU – Um símbolo desejado por Paulo VI e detestado pelos tradicionalistas.
A análise é do historiador da Igreja italiano Alberto Melloni, professor daUniversidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado no jornalCorriere della Sera, 08-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Poucos no mundo sabem quem é Lello Scorzelli. Mas um número imenso de seres humanos viu pelo menos uma de suas obras, pequena, de apenas alguns quilos, mas de imenso significado. A esse escultor napolitano, nascido no início dos anos 1920, com um escritório noVaticano, Paulo VI comissionou, para o encerramento do Concílio, uma nova “férula”: isto é, aquele bastão encimado pela cruz, sobre a qual Scorzelli também colocou um Jesus crucificado, magro e mesmo assim capaz de curvar, com o peso do seu sofrimento concentrado, a trave do mais célebre e delicado símbolo cristão.
As fotos conclusivas do Vaticano II mostram Paulo VI portar esse sinal que pertencia, desde a Idade Média, ao vestuário pontifício, mas que, desde o século XVI, era usado apenas em circunstâncias muito raras. Ele o trazia consigo quase como uma extensão estatuária, mesmo quando celebrou a missa na morte deMoro. E o deixou aos seus sucessores. João Paulo I e depois João Paulo II, que começou a brandi-lo, a elevá-lo, a fazê-lo voar consigo para todos os cantos do mundo: com uma audácia redescoberta primeiro, depois como um eixo em torno do qual se recolhia na intensidade da oração e, por fim, como apoio em que se agarrava, fraco e exausto.
Um sinal tão universal que pareceria inevitável até para Maurizio Cattelan: na sua provocação em La nona hora (foto acima, à esquerda) – a escultura com Wojtyla derrubado por um meteorito que justamente oMons. Franco Giulio Brambilla queria que fosse isolada do resto das obras na exposição dedicada ao artista em Milão há um ano – essa férula tomba com o papa. E é precisamente a falta desse sinal inconfundível que faz com que o Wojtyla de Oliviero Rainaldi (foto abaixo, à direita), posto em frente à Estação Termini, se pareça a uma guarita ou pior.
Pois bem, há algum tempo, a férula de Scorzelli desapareceu das cerimônias do pontífice. Desde o Domingo de Ramos de 2008, Bento XVIcomeçou a usar novamente (antes no original, depois uma cópia) o bastão com a cruz de ouro doada a Pio IX em 1877 e usada pelos pontífices até o Concílio. O crucifixo de Scorzelli (contra o qual se jogaram as psicoses dos tradicionalistas que veem ao seu redor as obsessões que povoam as suas almas) continua nos rosários que o papa presenteia aos seus hóspedes, mas não percorre mais as ruas de Roma e do mundo .
Um fato sem significado? Não é verdade: como nos ensinaram os grandes estudos de Agostino Paravicini Bagliani, os gestos, as vestes, os ritos que cercam o pontífice têm um peso que não está ligado ao seu conteúdo, mas sim à elaboração que os circunda.
E isso também se refere à férula: semelhante em função ao báculo pastoral que aparece nas miniaturas dos Concílios toletanos ainda desde o século VIII e depois na arte sacra, ela se distingue daquele por não ter aquela curvatura que a tradição ocidental tinha e que os patriarcas do Mediterrâneo não usavam.
Na Roma do século XIII, que agora vê prevalecer a forma monárquica do papado que marcará todo o segundo milênio cristão, se teorizava a diferença entre férula e pastoral (báculo): depois de Inocêncio III, defende-se que o pastoral se curva para indicar a dependência dos bispos (a coarctatam potestatem, quod curvatio baculi significat, cita São Tomás), enquanto a férula é isenta disso para simbolizar a plenitude do poder do papa.
Mas a recepção formal da férula, que no rito de coroação era entregue ao novo pontífice pelo arcipreste de São Lourenço, dá lugar a outros sinais, tais como a tiara papal e, depois do século XVI, torna-se um objeto de uso raro.
Quando a férula reaparece, o escultor Lello Scorzelli introduz nela umacurvatio que enuncia a obediência do bispo de Roma ao mistério da Cruz.Paulo VI assume essa curvatio do discipulado: e entra assim na Praça de São Pedro no fim do Concílio Vaticano II, no dia 8 de dezembro de 1965, no dia seguinte à retirada das excomunhões entre Igreja Oriental e Igreja Ocidental.
Uma obra de arte, essa férula de Lello Scorzelli, que marca a nova compreensão do ministério petrino ao qual os bispos de Roma da segunda metade do século XX se aplicaram com uma dedicação superior aos resultados, por enquanto.
Que o finíssimo gosto pelo antiquariado litúrgico de quem organiza as cerimônias papais queira dispensar a férula que João Paulo II fizera se tornar a sua tiara papal teológica é evidente. Que o sentido político das Igrejas considere que os lugares públicos desta Europa de sinistros rangidos precisam do crucifixo é compreensível. Que a eloquência simples e forte desse sinal seja a única coisa de que a Igreja precisa é um fato.
O artista
O artista
• Lello Scorzelli (1921-1997), escultor napolitano (foto), realizou para o Papa Paulo VI uma férula curva que terminava com um crucifixo, utilizada em seguida por um longo tempo por João Paulo II.
• A férula papal é o bastão pastoral que o pontífice usa durante as celebrações. Tradicionalmente não era curvo, como o dos outros bispos, representando o fato de que a autoridade real do papa não se curva diante de ninguém.
• Atualmente, Bento XVI utiliza uma férula diferente do do seu antecessor, que termina com uma cruz de ouro.
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