domingo, 8 de setembro de 2013

Roubo de peças sacras de basílica em Ouro Preto completa 40 anos de impunidade

Tesouro roubado ( e até hoje procurado ) 

 Um dos maiores ataques ao patrimônio de Minas faz 40 anos e ainda abala Ouro Preto. Ministério Público diz que até hoje busca peças


Por Gustavo Werneck / EM.COM.BR




O historiador Carlos Oliveira mostra a porta da Basílica do Pilar pela qual ladrões passaram.  (Beto Novaes/EM/D.A Press)
O historiador Carlos Oliveira mostra a porta da Basílica do Pilar pela qual ladrões passaram. 
  
Ouro Preto – O sino da Basílica de Nossa Senhora do Pilar vai tocar nesta segunda-feira, ao meio-dia, mantendo a tradição iniciada em 2 de setembro de 1973. Não será um som de alegria, mas fúnebre, sinal de perda. Nesta segunda-feira, faz 40 anos que ladrões, de madrugada, levaram 17 peças sacras do museu localizado no subsolo da igreja, considerada um dos monumentos mais importantes do país. Entre os objetos furtados havia uma coleção formada por custódia e três cálices de prata folheados a ouro, de origem portuguesa, usados no Triunfo Eucarístico, em 1733, a maior festa religiosa do Brasil colonial. Passado tanto tempo, não há, até hoje, uma única pista do patrimônio, avaliado na época em 6 milhões de cruzeiros (hoje, algo em torno de R$ 16 milhões) ou condenação dos verdadeiros culpados, embora o Ministério Público de Minas Gerais continue na busca. “Não perdemos a esperança de recuperar nosso acervo, de valor espiritual e artístico inestimável. Esta história é cheia de mistérios e silêncios”, diz o diretor do Museu de Arte Sacra do Pilar, o historiador Carlos José Aparecido de Oliveira.
Muitos dos personagens-chave – o pároco José Feliciano da Costa Simões, os zeladores do templo na época, os acusados do furto e outros – morreram, mas parentes e moradores não se esquecem dos dias de pesadelo. O inquérito ficou desaparecido por 13 anos, sumiu o boletim de ocorrência, enfim, documentos fundamentais para esclarecimento saíram de cena. No auge da ditadura militar, policiais tomaram conta da cidade e três delegados apuravam o caso, enquanto agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) faziam interrogatórios. Nas ruas, o imaginário popular criava versões diversas sobre a invasão do Pilar.

Padre Simões (1931–2009) foi um dos alvos de interrogatórios. “Ficou um mês em prisão domiciliar, sofreu tortura psicológica. Nunca se conformou com o ataque. Na década de 1980, enviou carta ao presidente João Figueiredo e procurou o diretor-geral da Polícia Federal, Romeu Tuma”, recorda-se o diretor do museu. Para o religioso, que ficou à frente da paróquia de 1963 a 2009, o furto era obra de gente poderosa. Mas nunca citava nomes.

Sempre debruçado sobre documentos, Carlos José guarda um recorte de jornal de 1978 relatando temas proibidos pelo regime militar. Entre eles está o seguinte artigo: “Fica proibido toda e qualquer notícia sobre o roubo de Ouro Preto”. Ao ver a página amarelada por quase quatro décadas, o diretor se pergunta: “Por que tanto mistério?”.

O certo é que o responsável pelo furto sabia o que estava procurando. “Eles foram direto ao museu, passaram por várias imagens da igreja e não levaram nenhuma. Queriam as coroas de Nossa Senhora do Pilar e do Menino Jesus, de ouro maciço e pedras preciosas – feitas, em Mariana, havia 10 anos, para celebrar a nomeação da imagem como padroeira pontifícia pelo papa João XXIII – e as peças usadas na festa do Triunfo Eucarístico. Por isso, trata-se do roubo de obras sacras mais importante do país”, afirma Carlos.

Prisões

Adão Magalhães, preso pelo crime (Arquivo EM -26/3/1974)
Adão Magalhães, preso pelo crime
 
 
Três semanas depois do roubo, a polícia prendeu Adão Pereira Magalhães, que respondia pelo furto de imagens em Alto Maranhão, em Congonhas, na Região Central. Ele responsabilizou o húngaro naturalizado brasileiro Francisco Schwarcz, antiquário e residente em São Paulo (SP). O comerciante negou participação, foi preso e solto.

A reconstituição do crime mostrou que os bandidos se esconderam num depósito fechado e protegido, na época, por uma cortina. Quando tudo se acalmou, saíram. Carlos José mostra uma porta pesada de acesso à sacristia e aberta sem problemas. Na sequência, encontraram outra, arrombada com chutes e ferramentas por estar trancada por dentro, e desceram as escadas em direção ao museu. Serraram duas barras de ferro da grade, com espaço para passagem de um corpo. Na vitrine com as peças, colaram tiras de esparadrapo para, com diamante, riscar e retirar o vidro sem quebrá-lo.

A fim de não perder tempo,  os bandidos arrombaram uma pequena porta e entraram na vitrine maior, depois nas menores. Fizeram então o caminho inverso e saíram pela porta da frente da igreja, que teve a fechadura antiga violada.

O que foi levado

 (REPRODUÇÃO: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)
Custódia Monumental (objeto para pôr a hóstia). Peça de prata folheada a ouro, com 7 quilos.

Três cálices em prata dourada e com pedestais folheados a ouro.  
Urna barroca, em tríplice dispositivo, com frisos simétricos, lisos em rica filigranem mourisca.

Chave grande do sacrário principal da igreja matriz.

Par de brincos de Nossa Senhora das Dores e pequenas joias e pedras semipreciosas

Escapulário com corrente de ouro, pertencente a Nossa Senhora das Dores

Pena folheada a ouro com incrustações, usada por dom Pedro II (1825-1891) em Ouro Preto

Cruz de Malta com rubis e brilhantes. Início do século 18

Coroa de Nossa Senhora do Pilar, em ouro, com 12 tipos de zircônio que destacam seis brilhantes

Coroa do Menino Jesus de Nossa Senhora do Pilar, em ouro e seis pedras preciosas, de lapidação retangular

Fonte: Inquérito policial

Roubar peças sacras é crime que não prescreve, alerta promotor  

Apesar da falta de pistas, promotor alerta que roubos como o da Basílica de Nossa Senhora do Pilar não prescrevem. 

Inquérito policial ficou desaparecido por 13 anos

Judith Gomes e a igreja: ela foi a última a coroar Nossa Senhora do Pilar (Beto Novaes/EM/D.A Press)
Judith Gomes e a igreja: ela foi a última a coroar Nossa Senhora do Pilar

"O coração do patrimônio de Ouro Preto foi atingido”, diz o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (OPPC), Marcos Paulo de Souza Miranda. Ele explica que crimes dessa natureza não prescrevem e, portanto, se identificadas em qualquer lugar, as peças serão alvo de busca e apreensão. “Temos esperança de reencontrar esse acervo. Afinal, os três anjos de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, voltaram para Minas há exatos 10 anos e depois para o Santuário de Santa Luzia. “Essas peças foram levadas da igreja na década de 1950 para o Rio de Janeiro e retornaram. É possível que o mesmo ocorra em Ouro Preto”, afirma.

Se para moradores de Ouro Preto o assalto foi cinematográfico, o encaminhamento do caso foi, no mínimo, surreal. Afinal, o inquérito policial desapareceu e só foi reencontrado 13 anos depois, diz Marcos Paulo. Em 1986, ainda sem notícias das peças do Museu de Arte Sacra, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ajuizou ação contra os acusados Adão Pereira Magalhães e Francisco Schwarcz, pedindo indenização pelos danos causados ao patrimônio cultural de Minas. A ação chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília (DF), mas a resposta foi que se tratava de algo "juridicamente impossível". Marcos Paulo revela que as fotos das peças do Triunfo Eucarístico estão no livro Relíquia da terra do ouro, de Edgard de Cequeira Falcão, publicado em 1946. “Este livro correu mundo e pode ter despertado a cobiça em vários países. Esse acervo não tem preço. Já tivemos roubos maiores em Minas, mas este foi especial”, diz o promotor.

As 17 peças estão na lista dos bens procurados pelo MPMG e, se encontradas, poderão ser facilmente identificadas. Filha de João Evangelista Gomes, falecido em 1984, aos 76 anos, e um dos zeladores da igreja em 1973, a coordenadora paroquial do Pilar, Geralda da Purificação Gomes, é capaz de bater o olho e reconhecer os cálices, a urna (cofre da irmandade do Santíssimo Sacramento de Ouro Preto usado na cerimônia da quinta-feira santa), a custódia (objeto para expor a hóstia consagrada) e os demais bens roubados. “Meu pai sofreu muito, passou tempos sem sair de casa, triste. Ele ajudou o padre Simões a idealizar o museu. No dia do roubo, chegou à matriz por volta das 5h30, a fim de arrumar o templo para a primeira missa do dia, celebrada às 7h”, lembra-se Geralda, que cita ainda o zelador Gentil de Souza e o sacristão João como as pessoas que estavam na companhia dele. “Todo mundo em Ouro Preto virou suspeito. Tenho certeza de que as peças vão voltar.”

A irmã de Geralda, a bibliotecária Judith Conceição Gomes, foi a última menina a coroar Nossa Senhora do Pilar. A cerimônia foi em 1972, quando se comemoravam de norte a sul os 150 anos da Independência do Brasil. “Nunca vou me esquecer. A peça não era muito pesada, tinha pedras preciosas, bem bonita”, diz Judith. A bibliotecária também reconheceria o objeto em qualquer lugar do planeta. “O véu que a minha amiga Valéria pôs na imagem tinha seis metros de comprimento”, relembra.

Em Belo Horizonte, o ex-delegado Antônio Orfeu Braúna, de 70, conta que trabalhou no início do caso e destaca que o patrimônio de Ouro Preto sempre foi cobiçado. “As igrejas não tinham segurança”, lamenta.

 
Basílica de Ouro Preto toca sino para lembrar roubo de peças sacras  


Ouro Preto mantém tradição de tocar sino da Basílica de Nossa Senhora do Pilar para cobrar a recuperação das peças. 

Moradores relembram clima de medo durante as investigações
Museu, no subsolo da igreja, de onde ladrões levaram 17 peças em 1973: vestimentas estão expostas até hoje (Beto Noves/EM/D.A Press)
Museu, no subsolo da igreja, de onde ladrões levaram 17 peças em 1973: vestimentas estão expostas até hoje


A ideia de tocar o sino da matriz todo dia 2 setembro partiu do padre Simões – era uma forma de cobrar uma atitude das autoridades. “Mantemos a tradição”, afirma o diretor de Arte Sacra de Ouro Preto, Carlos José Aparecido de Oliveira. Incansável na sua luta, o pároco sempre teve esperança de rever o acervo, enquanto distribuía cartas abertas à população. Numa delas, em 1990, escreveu: “Pessoas altamente qualificadas em roubar ficaram, durante a noite, na Matriz do Pilar de Ouro Preto. Realizaram a repugnante profanação, tirando peças preciosíssimas (…), ferindo nossa fé cristã e machucando a consciência cultural de Ouro Preto, das Minas Gerais e do Brasil. Vilipendiaram o sacrossanto e arrancaram as raízes históricas de uma comunidade”.

Natural de Ouro Preto e residindo atualmente entre essa cidade e o Rio de Janeiro (RJ), a jornalista Laura Godoy, de 33 anos, ainda não tinha nascido quando tudo ocorreu, mas sente o mesmo pesar da população. Autora de uma monografia sobre o fato, Laura entrevistou padre Simões e lembra bem a certeza dele de que o roubo fora encomendado e “envolvia pessoas graúdas”. Ele era tão incomodado com essa história, acrescenta Laura, que, quando podia, visitava antiquários em São Paulo e se fazia passar por comprador, na tentativa de reencontrar alguns dos objetos. Conforme matéria publicada pelo Estado de Minas em 2 de setembro de 1979, padre Simões confessou: “Muita gente sofreu durante as investigações, inclusive eu. Um rapaz esteve mais de uma semana preso no Dops, em Belo Horizonte, sofrendo horrores para confessar”.

O artista plástico Luiz Antônio Rodrigues morava ao lado do Pilar, como ocorre até hoje, e atuava como guia na igreja. “Foram dias com muitos policiais nas ruas, mal-encarados, que enxergavam todos como suspeitos. Queriam pegar um bode expiatório”, conta. Num daqueles dias, ele foi “convidado” para tomar um café com o padre Simões e viu militares com baionetas. “Na minha inocência, fiquei até fã dos policiais, pois tudo parecia um filme. E eu só tinha visto isso no cinema.” De repente, ele fica bem sério e fala sobre padre Simões. “Ele apanhou, levou uns bons tapas. Envelheceu com esta história”.

Na porta da casa de Alice Ribas, de 99, próxima à Basílica do Pilar – a igreja recebeu esse título no ano passado, por decreto do papa Bento XVI –, há uma fotografia do templo que ela frequenta a vida inteira. Com a voz baixinha e protegida pelo cachecol branco de lã, Alice diz que se lembra daquele dia, quando chegou bem cedo para a missa das 7h. Viu a igreja toda aberta. O padre já estava a postos. “Eu me lembro…”, murmura. E quando perguntada se foi procurada pela polícia, ela arregala os olhos e responde: “Polícia? Não…”, e, imediatamente, volta para um mundo bem particular.

Olhando a fachada da igreja, Carlos José lamenta. “Naquele tempo, as igrejas não tinham segurança nem se fazia o registro fotográfico do acervo”. Uma testemunha que poderia ajudar levou para o túmulo um segredo que poderia pôr fim ao caso. Ela teria visto um veículo Variant branco e pessoas dentro do templo, mas achou melhor ficar calada e não depor na polícia. Se anotou a placa, ninguém sabe.

DENUNCIE   

Se tiver informação sobre os bens desaparecidos ou quiser fazer alguma denúncia, entre em contato:

Ministério Público de Minas

e-mail: cppc@mp.mg.gov.br e telefone (31) 3250-4620


Iphan

Telefone (21) 2262-1971, fax (21) 2524-0482,
e-mail: bcp-emov@iphan.gov.br

Iepha/MG
e-mail:www.iepha.mg.gov.br
ou pelo telefone (31) 3235-2812 ou 2813

Secretaria paroquial do Pilar
Telefone: (31) 3551-4735/4736
e e-mail: artesacraouropreto@yahoo.com.br

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