Por Chiquinho de Assis*
Os sinos, ao longo dos séculos, detiveram o poder de atuar junto às sociedades como um mítico comunicador espiritual e temporal a partir de toques, interpretados de forma sui generis de região para região. Tais toques têm como base organizacional prescrições litúrgicas. No entanto, comunidades religiosas foram compondo, à maneira local, os seus meios e modos característicos de ensino, execução e entendimento destes, valendo tanto para os anúncios litúrgicos quanto para os anúncios civis.
A reivindicação funcional a cerca dos sinos não aparece como uma exclusividade da região mineira. De uma maneira geral, os sinos são vistos pela sociedade como um objeto intimamente ligado à religiosidade. Existem diversas associações entre este objeto e os símbolos tradicionais da fé, sejam eles cristãos, mulçumanos, budistas etc. São muitos os exemplos e narrativas que trazem este objeto como centro do religare humano, que talvez não se expresse somente pelo visual, mas antes de tudo por um conjunto de relações sonoras que implicam sensações ritualísticas, espirituais, xamânicas e mitológicas nas sociedades que o tem como objeto funcional.
Em Minas Gerais, particularmente, percebe-se que este instrumento, além de assumir uma relevante função de comunicação sócio-religiosa, assume também o papel de componente estético, sempre presente nas construções dos templos erguidos para o ato do religare. São muitos os exemplos de igrejas e capelas, que mesmo nas mais afastadas regiões, abrigam sinos através de diversas soluções arquitetônicas e que anunciam a vida, a festa, a calamidade e a morte. Este fato demonstra que a colonização nas Minas do século 18 traz neste vasto número de construções religiosas – fruto da fausta demonstração de fé e poder – ações que privilegiam aspectos sensitivos diversos: o som, a cor, o sabor, o corpo etc.
Estes espaços públicos destinados aos atos religiosos existiam à medida que fossem liberados pela Santa Igreja e coordenados por grupos gerenciadores – no caso as Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras – que se organizavam em torno de interesses comuns, abarcados muitas vezes pela raça, cor, nível social, etc. Ao surgirem, esses grupos, reuniam em sua concepção de fé e sociedade diversas formas de atuação. Dentre elas a busca pelo instrumento sino, objeto sagrado, religioso e requisitado elemento presente nas construções religiosas e exercendo relevante papel na comunicação entre a igreja e a sociedade.
O lugar de destaque dado ao sino contribuía para o maior fervor da ordem e com isto do seu culto religioso. Ainda havia o desejo de que o sino tivesse um tamanho considerável, demonstrando o quanto era importante suprir o aspecto sensitivo e de poder e propagando uma sonoridade de intensidade respeitável. Esta exigência traz à tona não somente a questão do fausto das aquisições assim como a reafirmação social.Sineiros, músicos por vocação – Curt Lange em seu livro Os Irmãos Músicos da Irmandade de São José dos Homens Pardos de Vila Rica não deixou de citar o tema:
[...] A fundição de sinos e o seu içamento também pertecem à história da Música brasileira, e particulamente à das Minas Gerais, outrora região muito perigosa que cerceou milhares de vidas. Naqueles longíquos anos, dos toques das horas às chamadas para as Missas, Novenas e grandes solenidades religiosas, dos anúncios de morte de um soberano aos toques de fogo ou finados, os sons, ora alegres, ora lúgubres, interferiram com a sua amálgama de vibrações bronzíneas como significativa linguagem na existência dos homens. (LANGE, 1968:16).
Ora, se “a fundição de sinos e o seu içamento fazem parte da história da música brasileira e particularmente à das Minas Gerais” como disse o grande pesquisador Lange, não faria também parte desta história os sineiros, que seriam os indivíduos que perpetuaram esta prática ao longo dos séculos? Tal esquecimento inscreve-se na linha de grande parte das pesquisas realizadas sobre a prática da música mineira dos séculos 18 e 19, pois estas pesquisas deixaram de lado ou simplesmente não contemplaram os diversos elementos que circundavam, e, portanto, contextualizavam a música religiosa. Dentre estes elementos estão os sineiros, pois ainda hoje são desconhecidos trabalhos que reflitam sobre os tangedores dos sinos, sineiros ou simplesmente tocadores de sinos.
Toda esta fabricação comunicativa, que tem como elemento principal o instrumento sino, somente ganhou séculos de vida devido à figura de um agente detentor das peculiaridades idiomáticas regionais construídas sócio-religiosamente para este ato. Logo, se torna necessário refletir sobre o tocador de sinos, figura conhecida entre os seus pares como sineiro. Estes “pedreiros anônimos” são os responsáveis por toda uma prática sonora e funcional que atua no sentido de comunicar à cidade acontecimentos de diversas ordens, além, é claro, de fazerem parte do contexto religioso das atividades religiosas assim como: músicos, cantores, padres, fiéis, fogueteiros, dentre outros.
Mas quem seria o sineiro?
Por ser uma prática de execução, ensino e aprendizagem de tradição oral, o sineiro nunca foi considerado como músico e tampouco despertou ao longo dos anos o interesse de estudiosos. Segundo Mário de Andrade, o sineiro seria aquele “Indivíduo que tem como profissão tocar sinos de igreja”. Durante todo processo de entrevistas em campo, foi notório que nenhum dos sineiros fez uso da expressão “profissão” atrelada ao ofício de tocar sino. Para muitos, o não emprego do termo vem do fato da não remuneração cotidiana pelos toques e pela ligação direta de tal ofício com a questão da fé religiosa, que seria inegociável do ponto de vista do fiel.
O envolvimento com os sinos é de entrega à atividade onde Deus é na maioria das vezes citado. Sendo assim, pode-se afirmar que o sineiro em Ouro Preto – ao contrário do que diz o grande mestre Mário de Andrade – é aquele indivíduo que está constantemente nas torres sineiras sem nenhuma intenção profissional tocando os sinos por envolvimento religioso.
Na cidade de Ouro Preto a atividade sineira está, hoje, nas mãos de sineiros que são em sua maioria adolescentes que têm em média a idade de 9 a 20 anos e que compõem o contexto religioso do lugar, ou seja, atuam como coroinhas, ajudam nos afazeres da igreja e tocam sino. No entanto, este universo etário faz parte da história recente dos sinos de Ouro Preto. Este fato, pelo que se pôde constatar, deu-se a partir de meados do século 20, pois até então a atividade sineira estava destinada à figura do sacristão. Este além das atividades de zelar e dar manutenção ao templo, também se ocupava do ofício de tocar e ensinar o toque dos sinos. O ensino da prática sineira. Esse será nosso próximo artigo.
*Chiquinho de Assis é Licenciado em Educação Musical UFOP e Mestre em Música e Sociedade pela Escola de Música/UFMG
Fonte: mimo.art.br
Os sinos, ao longo dos séculos, detiveram o poder de atuar junto às sociedades como um mítico comunicador espiritual e temporal a partir de toques, interpretados de forma sui generis de região para região. Tais toques têm como base organizacional prescrições litúrgicas. No entanto, comunidades religiosas foram compondo, à maneira local, os seus meios e modos característicos de ensino, execução e entendimento destes, valendo tanto para os anúncios litúrgicos quanto para os anúncios civis.
A reivindicação funcional a cerca dos sinos não aparece como uma exclusividade da região mineira. De uma maneira geral, os sinos são vistos pela sociedade como um objeto intimamente ligado à religiosidade. Existem diversas associações entre este objeto e os símbolos tradicionais da fé, sejam eles cristãos, mulçumanos, budistas etc. São muitos os exemplos e narrativas que trazem este objeto como centro do religare humano, que talvez não se expresse somente pelo visual, mas antes de tudo por um conjunto de relações sonoras que implicam sensações ritualísticas, espirituais, xamânicas e mitológicas nas sociedades que o tem como objeto funcional.
Em Minas Gerais, particularmente, percebe-se que este instrumento, além de assumir uma relevante função de comunicação sócio-religiosa, assume também o papel de componente estético, sempre presente nas construções dos templos erguidos para o ato do religare. São muitos os exemplos de igrejas e capelas, que mesmo nas mais afastadas regiões, abrigam sinos através de diversas soluções arquitetônicas e que anunciam a vida, a festa, a calamidade e a morte. Este fato demonstra que a colonização nas Minas do século 18 traz neste vasto número de construções religiosas – fruto da fausta demonstração de fé e poder – ações que privilegiam aspectos sensitivos diversos: o som, a cor, o sabor, o corpo etc.
Estes espaços públicos destinados aos atos religiosos existiam à medida que fossem liberados pela Santa Igreja e coordenados por grupos gerenciadores – no caso as Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras – que se organizavam em torno de interesses comuns, abarcados muitas vezes pela raça, cor, nível social, etc. Ao surgirem, esses grupos, reuniam em sua concepção de fé e sociedade diversas formas de atuação. Dentre elas a busca pelo instrumento sino, objeto sagrado, religioso e requisitado elemento presente nas construções religiosas e exercendo relevante papel na comunicação entre a igreja e a sociedade.
O lugar de destaque dado ao sino contribuía para o maior fervor da ordem e com isto do seu culto religioso. Ainda havia o desejo de que o sino tivesse um tamanho considerável, demonstrando o quanto era importante suprir o aspecto sensitivo e de poder e propagando uma sonoridade de intensidade respeitável. Esta exigência traz à tona não somente a questão do fausto das aquisições assim como a reafirmação social.Sineiros, músicos por vocação – Curt Lange em seu livro Os Irmãos Músicos da Irmandade de São José dos Homens Pardos de Vila Rica não deixou de citar o tema:
[...] A fundição de sinos e o seu içamento também pertecem à história da Música brasileira, e particulamente à das Minas Gerais, outrora região muito perigosa que cerceou milhares de vidas. Naqueles longíquos anos, dos toques das horas às chamadas para as Missas, Novenas e grandes solenidades religiosas, dos anúncios de morte de um soberano aos toques de fogo ou finados, os sons, ora alegres, ora lúgubres, interferiram com a sua amálgama de vibrações bronzíneas como significativa linguagem na existência dos homens. (LANGE, 1968:16).
Ora, se “a fundição de sinos e o seu içamento fazem parte da história da música brasileira e particularmente à das Minas Gerais” como disse o grande pesquisador Lange, não faria também parte desta história os sineiros, que seriam os indivíduos que perpetuaram esta prática ao longo dos séculos? Tal esquecimento inscreve-se na linha de grande parte das pesquisas realizadas sobre a prática da música mineira dos séculos 18 e 19, pois estas pesquisas deixaram de lado ou simplesmente não contemplaram os diversos elementos que circundavam, e, portanto, contextualizavam a música religiosa. Dentre estes elementos estão os sineiros, pois ainda hoje são desconhecidos trabalhos que reflitam sobre os tangedores dos sinos, sineiros ou simplesmente tocadores de sinos.
Toda esta fabricação comunicativa, que tem como elemento principal o instrumento sino, somente ganhou séculos de vida devido à figura de um agente detentor das peculiaridades idiomáticas regionais construídas sócio-religiosamente para este ato. Logo, se torna necessário refletir sobre o tocador de sinos, figura conhecida entre os seus pares como sineiro. Estes “pedreiros anônimos” são os responsáveis por toda uma prática sonora e funcional que atua no sentido de comunicar à cidade acontecimentos de diversas ordens, além, é claro, de fazerem parte do contexto religioso das atividades religiosas assim como: músicos, cantores, padres, fiéis, fogueteiros, dentre outros.
Mas quem seria o sineiro?
Por ser uma prática de execução, ensino e aprendizagem de tradição oral, o sineiro nunca foi considerado como músico e tampouco despertou ao longo dos anos o interesse de estudiosos. Segundo Mário de Andrade, o sineiro seria aquele “Indivíduo que tem como profissão tocar sinos de igreja”. Durante todo processo de entrevistas em campo, foi notório que nenhum dos sineiros fez uso da expressão “profissão” atrelada ao ofício de tocar sino. Para muitos, o não emprego do termo vem do fato da não remuneração cotidiana pelos toques e pela ligação direta de tal ofício com a questão da fé religiosa, que seria inegociável do ponto de vista do fiel.
O envolvimento com os sinos é de entrega à atividade onde Deus é na maioria das vezes citado. Sendo assim, pode-se afirmar que o sineiro em Ouro Preto – ao contrário do que diz o grande mestre Mário de Andrade – é aquele indivíduo que está constantemente nas torres sineiras sem nenhuma intenção profissional tocando os sinos por envolvimento religioso.
Na cidade de Ouro Preto a atividade sineira está, hoje, nas mãos de sineiros que são em sua maioria adolescentes que têm em média a idade de 9 a 20 anos e que compõem o contexto religioso do lugar, ou seja, atuam como coroinhas, ajudam nos afazeres da igreja e tocam sino. No entanto, este universo etário faz parte da história recente dos sinos de Ouro Preto. Este fato, pelo que se pôde constatar, deu-se a partir de meados do século 20, pois até então a atividade sineira estava destinada à figura do sacristão. Este além das atividades de zelar e dar manutenção ao templo, também se ocupava do ofício de tocar e ensinar o toque dos sinos. O ensino da prática sineira. Esse será nosso próximo artigo.
*Chiquinho de Assis é Licenciado em Educação Musical UFOP e Mestre em Música e Sociedade pela Escola de Música/UFMG
Fonte: mimo.art.br
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