domingo, 10 de junho de 2012

O sacerdote e a arte sacra

 Mons. Timothy Verdon*
 
A arte sacra é útil ao sacerdote tanto em sua vida como homem e cristão quanto em seu ministério presbiteral. O Santo Padre Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, de 2007, fez menção a ambos os contextos, indicando a beleza artística como uma das “modalidades com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança” (nº 35) e sublinhando a “ligação intrínseca entre a beleza e a liturgia”. Tendo em vista essa ligação, diz o Papa, “é indispensável que, na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a História da Arte com especial referência aos edifícios de culto à luz das normas litúrgicas” (nº 41).

Essas palavras fazem parte da milenar tradição católica, que sempre promoveu, explicou e, quando preciso, defendeu o papel desempenhado pela arte no crescimento espiritual dos fiéis e na missão pastoral da Igreja. Já no final da era patrística, São Gregório Magno resumia a experiência dos primeiros séculos cristãos em termos que a tradição sintetizou com a frase “Biblia pauperum”, “Bíblia dos pobres”; escrevendo a um bispo iconoclasta, São Gregório salientou a finalidade propriamente espiritual das imagens sagradas. “Uma coisa é adorar uma pintura, outra é aprender, com uma cena representada numa pintura, o que é adorar”, dizia, acrescentando que “a fraternidade dos presbíteros tem a obrigação de admoestar os fiéis de modo a que estes experimentem ardente compunção ante o drama da cena representada e, assim, prostrem-se humildemente em adoração diante da única onipotente Santíssima Trindade” (Epístola Sereno episcopo massiliensi, 2, 10).

Com o mesmo espírito, em nosso tempo, o papa Paulo VI sugeriu a estreita afinidade entre o trabalho do sacerdote e o do artista: “Louvamos enormemente o artista”, dizia, numa audiência de 7 de maio de 1964, “porque ele exerce um ministério parassacerdotal ao lado do nosso. Nosso ministério é o dos mistérios de Deus; o seu é o da colaboração humana, que torna esses mistérios presentes e acessíveis”. E no documento absolutamente mais importante nesse campo, a Carta aos artistas de João Paulo II, de 1999, o mesmo tema é frisado quando o Papa afirma que, “para transmitir a mensagem que Cristo lhe confiou, a Igreja tem necessidade da arte. De fato, deve tornar perceptível e até o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus” (nº 12).

Esses textos do Magistério constituem as bases da avaliação do então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger, na introdução ao Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, para o qual ele mesmo havia escolhido um conjunto de imagens de diversas épocas e culturas. O futuro papa observava que “os artistas de todos os tempos ofereceram à contemplação e à admiração dos fiéis os fatos salientes do mistério da salvação, apresentando-os no esplendor da cor e na perfeição da beleza”, e conclui definindo o papel da arte no passado, do ponto de vista pastoral, como “um indício de como hoje, mais que nunca, na civilização da imagem, a imagem sagrada pode exprimir muito mais que a própria palavra, uma vez que é muito eficaz o seu dinamismo de comunicação e de transmissão da mensagem evangélica”.

O sacerdote, cuja espiritualidade pessoal e profissional está ligada aos sinais sacramentais que ele administra, percebe facilmente a relação entre a arte visual e a fé cristã. Sabe que, em Jesus Cristo, o Verbo de Deus fez-se visível, tornando-se ele mesmo “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), e entende, portanto, que o papel das imagens humanas na vida dos cristãos é de certa forma análogo ao do Verbo encarnado na história. “Houve um tempo em que não era permitido fazer imagem alguma de um Deus incorpóreo e sem contornos físicos”, lembrava São João Damasceno, referindo-se à proibição veterotestamentária a qualquer representação da Divindade. “Mas Deus, agora”, continuava, “fez-se ver na carne e se misturou à vida dos homens, de modo tal que é lícito fazer uma imagem do que foi visto de Deus” (Discurso sobre as imagens 1, 16). Citando essa obra do século VII, João Paulo II escreveu em 1987: “A arte da Igreja deve ter a preocupação de falar a linguagem da Encarnação e exprimir, com os elementos da matéria, Aquele que se dignou habitar na matéria e realizar a nossa salvação através da matéria” (Duodecimum saeculum, nº 11).

Embora ainda usemos o termo “Bíblia dos pobres”, a questão não ser reduz às imagens didáticas que, em circunstâncias particulares, substituem o texto escrito. Mais do que isso, na concepção católica, a imagem pode tocar a íntima realidade moral e espiritual da pessoa. “A nossa tradição mais autêntica, que compartilhamos plenamente com os nossos irmãos ortodoxos”, dizia ainda João Paulo II, “ensina-nos que a linguagem da beleza, posta a serviço da fé, é capaz de atingir o coração dos homens e de os levar a conhecer, a partir de dentro, Aquele que ousamos representar nas imagens, Jesus Cristo” (ibid., nº 12). Num documento paralelo, também de 1987, o Patriarca Dimitrius I, de Constantinopla, afirmava que, na tradição ortodoxa, “a imagem [...] se torna a forma mais poderosa assumida pelos dogmas e pela pregação” (Encyclique sur la signification théologique de l’icone, 14.9.1987).

Seja na tradição da Igreja do Oriente, seja na do Ocidente, o uso de imagens sacras no contexto da liturgia serviu, ao longo dos séculos, para manifestar a relação especial que, graças à Encarnação de Cristo, subsiste entre “sinal” e “realidade” dentro da economia sacramental. Em verdade, essa relação transparece em todas as obras que o homem associa ao culto divino, desde os vasos e tecidos sacros até as mais monumentais construções arquitetônicas, pois o uso das coisas na liturgia da Igreja revela e atualiza sempre a vocação do mundo infra-humano, chamado, com o homem e por meio do homem, a dar glória a Deus. Mais ainda que das coisas, porém, a arte fala dos homens e das mulheres que a criam, pois – como afirmam os bispos toscanos numa Nota Pastoral de 1987 -, pela forma como “transfiguram” a matéria, “os artistas revelam por analogia a estrutura da criatividade pessoal, ou seja, do modo como todo homem e mulher ‘projetam’, ‘modelam’ e ‘colorem’ sua vida para melhor servir a Deus e ao próximo” (La Vita si è fatta visibile. La comunicazione della fede attraverso l’arte, nº 12). João Paulo II inserirá essa observação no horizonte ético do artista enquanto indivíduo, afirmando que “quem tiver notado em si mesmo esta espécie de centelha divina que é a vocação artística [...] adverte ao mesmo tempo a obrigação de não desperdiçar este talento, mas de o desenvolver para colocá-lo a serviço do próximo e de toda a humanidade” (Carta aos artistas, nº 3). Com tons brilhantes e tintas luminosas, o Papa recria a experiência do artista, em que “a aspiração de dar um sentido à própria vida se une com a percepção fugaz da beleza e da unidade misteriosa das coisas”. Admite também a frustração experimentada pelos artistas diante do “distância incolmável que existe entre a obra das suas mãos, mesmo quando bem-sucedida, e a perfeição fulgurante da beleza vislumbrada no ardor do momento criativo”, de cujo esplendor a obra realmente pintada ou esculpida nada mais é senão um pálido reflexo. Mas compartilha também o êxtase do fiel diante de uma obra-prima da arte, explicando que “sabe que se debruçou por um instante sobre aquele abismo de luz que tem a sua fonte originária em Deus” (nº 6).

É por isso que Paulo VI, falando aos poetas e homens de letras, aos pintores, escultores, arquitetos e músicos, à gente do teatro e do cinema, na conclusão do Concílio Vaticano II, já dizia: “Desde há muito que a Igreja se aliou convosco. Vós tendes edificado e decorado os seus templos, celebrado os seus dogmas, enriquecido a sua Liturgia. Tendes ajudado a Igreja a traduzir a sua divina mensagem na linguagem das formas e das figuras, a tornar perceptível o mundo invisível. Hoje como ontem, a Igreja tem necessidade de vós e volta-se para vós. E diz-vos pela nossa voz: não permitais que se rompa uma aliança entre todas fecunda. Não vos recuseis a colocar o vosso talento ao serviço da verdade divina. Não fecheis o vosso espírito ao sopro do Espírito Santo. O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração” (Mensagens do Concílio à humanidade, 8 de dezembro de 1965).

Por conseguinte, o sacerdote deve procurar os artistas, conhecê-los e aprender com eles. À sua maneira, são sempre homens e mulheres “de fé” – mesmo quando se proclamam não-crentes -, pois fazem coisas. A fé, criativa, gera obras, e, “se não tiver obras, está morta em seu isolamento” (Tg 2,17), como uma ideia genial que o artista não traduz numa pintura ou numa escultura. A fé, além disso, é um terreno familiar aos artistas, que todos os dias têm de enfrentar o esforço de traduzir intuições e ideias, impressões e observações, concretizando-as, em “obras”. Sabem muito bem que a única forma de se aperfeiçoar é esforçando-se, lançando-se, correndo o risco do fracasso, do desperdício de tempo, de materiais e de energia: correndo, até, o risco do ridículo. Melhor que qualquer outra pessoa, entendem como em Abraão “a fé concorreu para as suas obras” e “pelas obras é que a fé se realizou plenamente” (Tg 2,21-22).

Mas os artistas compreendem a dinâmica da fé num nível ainda mais essencial, identificando-se com o “risco” e o “pathos” do próprio Artífice Deus. Experimentam, como íntima esperança, necessidade e sofrimento, o desejo de externar uma ideia que lhes escapa, um conceito “único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante” (Sb 7,22), que parece, às vezes, recapitular tudo o que o artista sabe que tem em seu íntimo, e que ele deseja, ou melhor, precisa compartilhar com os outros, para fazer que vejam com seus olhos e contemplem e toquem com suas mãos uma coisa que estava nele “desde o princípio” (1Jo 1,1). Não há artista que não se identifique com o Criador, que arriscou tudo para manifestar sua vida aos homens (cf. 1Jo 1,1-2).

Com os artistas, o sacerdote pode aprender que a fé, em si, é arte. É claro que em primeiro lugar é dom, mas é um dom que, tal como o talento humano, deve ser desenvolvido por quem o recebe. Não falo, aqui, da fé entendida como sistema, admirável compêndio de crenças e tradições, mas do ato de fé, do salto de fé, do risco assumido pelo qual a pessoa passa de uma existência “artesanal”, feita de causas e efeitos, à vida experimentada como arte, vivida como uma obra “inspirada”, aberta à gratuidade, modelada pela graça. As causas e os efeitos podem, infelizmente, exigir vinganças e guerras, aprisionando o homem; a graça, que é verdade gratuitamente doada, perdoa e nos torna livres.
O sacerdote deve saber dessas coisas quando reza, quando celebra a missa, quando reconcilia os pecadores com Deus. E pode aprendê-las, se Deus quiser, também com a arte e com os artistas.



* Mons. Timothy Verdon, cônego da Catedral de Florença e diretor da Secretaria para a Catequese por meio da Arte da Arquidiocese de Florença, foi consultor da Pontifícia Comissão para os Bens Culturais.

Fonte: Clerus

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