segunda-feira, 22 de junho de 2015
Arte e espiritualidade: O coração de Cristo
O coração, na Escritura, não é a sede dos sentimentos mas dos pensamentos mais profundos e das decisões. Olhar o coração de Cristo significa reportar-se às escolhas fundamentais da existência que apelam a fazer-se verdade em nós mesmos e nos outros.
Hoje já não se fala dos Novíssimos [realidades diretamente relacionadas com o fim último da pessoa], todavia o drama da morte e da finitude da vida entra nas nossas casas a casa dia através das notícias: as calamidades naturais, as perseguições contra os cristãos, os homicídios mais absurdos.
Em tempos, a pregação e as imagens disseminadas nos livros de oração ou nas igrejas ajudavam muito a fixar o olhar sobre o próprio coração e sobre as consequências das escolhas mais secretas. Entre as variadas, a iconografia ligada ao Sagrado Coração difunde-se sobretudo após 1650, ou seja, depois das aparições do Sagrado Coração a Santa Margarida Maria Alacoque.
Contudo, fazia tempo que o coração de Jesus era venerado enquanto modelo das virtudes cristãs. Alonso Cano, pintor e escultor espanhol, representa, já em 1636, uma curiosíssima imagem do Coração de Jesus.
O divino infante está sentado com um hábito cinzento, gasto, sinal daquele lençol que o envolve na última hora e aqui tingido de cinza da morte. Parece adormecido, e a esta interpretação nos dirige o título: Jesus Menino com o coração em chamas, ferido de amor, "Ego dormio et cor meum vigilat".
Sim, eu durmo mas o meu coração vigia: as palavras da esposa do Cântico dos Cânticos são postas aqui na boca do esposo, Cristo, que, no sono da morte, vigia sobre todas as nossas feridas. É evidente, de resto, a ferida do coração sobre a qual Jesus se senta, indicando assim o abandono ao seu destino numa oferta sem segunda escolha.
Os olhos, ainda que fechados, veem-nos, perscrutando as nossas respostas. O dedo mindinho não está escondido na bochecha com os outros, e parece já avermelhado daquele sangue que derramará na cruz.
Alfonso Cano | D.R.
Diante de imagens semelhantes, Santa Teresa de Liseux amadureceu o seu pequeno caminho, educando-se a viver na profunda consciência do próprio limite e na infinita confiança na misericórdia de Deus.
O manto verde, que o Menino Jesus toca com a mão direita, é símbolo daquela vida que, diferentemente de nós, Ele pode dar e retomar.
Assim, o fiel, rezando diante dessas imagens, era impelido a olhar as agruras da vida presente com a confiança de ser guardado pelo olhar e amor do Salvador, o qual, não obstante o aparente silêncio, continua a velar por nós com a ternura de um pai e a força salvífica do seu sacrifício.
Outra obra, fruto de um anónimo peruano do séc. XVII, oferece-nos a efígie do Menino Jesus pintor, que ilustra aos seus fiéis as verdades últimas. Jesus não está dentro de um ateliê, mas entre as paredes do seu coração, modelo de verdade e simplicidade, e por isso modelo a imitar para alcançar a vida eterna.
Jesus, enquanto segura a paleta e o pincel, volta o olhar para nós, provocando-nos a uma resposta. O seu corpo está entre o paraíso e a ressurreição última, em que se verá o juízo (ao alto) e a morte e o inferno (em baixo).
Sondar o inconsciente nem sempre é fácil, e muitas vezes as motivações do nosso agir escapam a nós próprios. É por isso que em torno do coração de Cristo estão representados alguns personagens que oferecem as ajudas necessárias para se compreender a si próprios, os outros, e enfrentar a viagem da vida.
Anónimo peruano | D.R.
À esquerda encontramos as virtudes teologais: a caridade pede um coração materno para todos: a criança que amamenta, filho natural, e outra criança que curiosamente indica a segunda virtude, a esperança. Esta lê a Escritura, certa de nela encontrar o fundamento do seu esperar; aos pés tem a âncora da salvação que impede de se perder nas borrascas da vida.
De pé e com o olhar dirigido a nós, como Cristo, está a fé, que segura o Santíssimo Sacramento, onde o olhar se purifica e reencontra a justa leitura dos acontecimentos.
Os anjos da tela são Gabriel, Miguel e Rafael, testemunhas dos dons divinos: o anúncio de Cristo (a fé); a vitória última contra o mal (a esperança); a cura que Deus tem para nós (a caridade).
O selo da cena é a Trindade: o Pai coloca a cabeça de fora, observando a obra do Filho e enviando o Espírito Santo.
Também nós, hoje, como o antigo fiel de Cusco, olhando para esta imagem aprendemos a confiar-nos ao divino artista, obtendo as cores das virtudes cristãs para fazer da nossa vida uma obra-prima.
Gloria Riva
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 17.06.2015 Fonte: SNPC Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
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