Com pincéis, tintas e bisturis, eles são responsáveis pelos projetos de conservação do rico patrimônio histórico e cultural o estado
por Glória Tupinambás
DESCOBERTA VALIOSA: Silvio Oliveira tem em seu currículo a recuperação de igrejas como a Matriz de Nossa Senhora de Nazaré e a de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, sua cidade natal. Formado pela UFMG e com cursos na Europa, em Israel e nos Estados Unidos, ele acaba de encontrar indícios da pintura mais antiga já documentada em Minas, de 1720
Eles não se consideram artistas, mas seus pincéis, tintas, formões e bisturis são capazes de salvar a beleza dos mais valiosos exemplares do patrimônio histórico e cultural de Minas Gerais. Pelas mãos de restauradores, centenas de igrejas, museus e casarões centenários se transformam em ateliês; peças sacras e obras de arte recuperam o brilho original e se livram de danos provocados pela ação do tempo e do homem; e documentos antigos são cuidadosamente preservados. Ainda escassos em um mercado cada vez mais aquecido, profissionais como Silvio Luiz Rocha Vianna de Oliveira, Antonio Fernando Batista dos Santos, Alessandra Rosado e os irmãos Adriano e Maria Regina Ramos misturam paixão e técnicas apuradas para cuidar de relíquias, edificações e obras de mestres dos mais variados estilos, do barroco ao contemporâneo, e colecionam experiências curiosas como guardiões da história.
“Minas tem um acervo cultural muito precioso, com bens de épocas e técnicas diferenciadas”, diz a superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Minas, Michele Arroyo. Segundo ela, para trabalhar com essa diversidade, a experiência e a boa formação são determinantes. “Restaurador não é artista, não cria nada e jamais deixa sua marca”, afirma Silvio Oliveira, professor da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop). A frase resume bem o desafio de resgatar e preservar a originalidade dos bens culturais imposto aos profissionais da área. Responsável pela recuperação de ícones do estilo rococó, como a Igreja de São Francisco de Assis e o Palácio dos Governadores, em Ouro Preto, sua cidade natal, ele se viu envolvido pela atmosfera do município, reconhecido como patrimônio mundial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “Minha alma é barroca e o que me move na profissão é o sonho de ver cidades históricas bem preservadas”, diz. O maior tesouro da carreira de Oliveira foi descoberto há menos de um mês. Durante o restauro da Igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazaré, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, ele encontrou, no forro, indícios da pintura mais antiga já documentada em Minas. “Debaixo de quatro camadas de tinta, existe uma obra de 1720, de autoria do português Antônio Rodrigues Belo.” Com mais de quarenta anos de trabalho dedicados à restauração, ele afirma que, para o bem dessa área, é preciso que o poder público, além de fazer investimentos, atue melhor na conscientização dos cidadãos, corresponsáveis pela conservação do patrimônio.
Também naturais de Ouro Preto, os irmãos Adriano e Maria Regina Ramos acreditam que o fato de terem tido, durante a infância, um antiquário como casa foi fundamental para despertar o gosto pela arte e pela história. Filhos de colecionadores de objetos antigos, ambos começaram a frequentar cursos de restauração aos 14 anos e, na década de 80, fundaram, em BH, o Grupo Oficina de Restauro, uma das primeiras empresas de conservação de bens culturais do estado. À frente de uma equipe de mais de cinquenta profissionais, eles são responsáveis por trabalhos como a restauração do Palácio da Liberdade, no Funcionários, da Igreja São José, no Centro, do Museu do Ouro de Sabará e de templos em todo o Brasil e em Portugal. No mais novo ateliê do grupo, recém-inaugurado em Nova Lima, a menina dos olhos da equipe são as câmaras de gases inertes usadas para deixar as obras de arte livres da ação devastadora de insetos. Por meio da técnica de isolamento das peças em bolsas plásticas, nas quais o oxigênio é substituído por nitrogênio, os animais são exterminados. Graças a essa tecnologia, Adriano Ramos se orgulha de ter salvo dos cupins a coleção de periódicos da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, e livros raros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. “Cheguei a passar seis anos trabalhando dentro de um só lugar até conseguir que uma obra se livrasse de seus maiores inimigos, os insetos.”
CAÇA AOS INSETOS: Adriano Ramos entrou no universo da restauração aos 14 anos e hoje é pioneiro no uso de técnica com gases inertes para combater a infestação de insetos. Salvou de cupins coleções da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, e da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
O episódio mais inusitado vivido por Maria Regina - conhecida como Marrege - em sua carreira de restauradora ocorreu em um convento de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Munida de bisturi, ela retirava uma camada de repintura da imagem de Cristo, mas foi interrompida por um grupo de freiras aos prantos. “Elas me impediram de continuar o serviço dizendo que Jesus já havia sofrido muito e eu não tinha o direito de ‘machucá-lo’”, conta. Foi necessária a intervenção da madre superiora.
A restauração de um bem cultural começa muito antes da montagem de andaimes e do minucioso trabalho com tintas e pincéis. Nos bastidores da conservação patrimonial, o nome de Antonio Fernando dos Santos é unanimidade quando o assunto é a elaboração de projetos e diagnósticos que vão orientar as intervenções. Em seu currículo estão nada menos que a recuperação de profetas esculpidos por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, e os painéis de Candido Portinari que adornam a Igreja São Francisco de Assis, cartão-postal modernista da Pampulha. Mas o feito de maior orgulho de Santos é o resgate da imagem de Nossa Senhora das Mercês, de autoria de Aleijadinho, desaparecida de Ouro Preto desde 1962. Graças à descoberta de uma estampa floral no tecido usado para cobrir o oratório que abrigava a imagem, o restaurador conseguiu identificar a peça, que estava nas mãos de um colecionador paulista. “Foram meses de disputa judicial, mas pequenos detalhes do processo de conservação desvendaram o caso”, diz Santos, que hoje tem a santa como protetora.
No campo da preservação do patrimônio histórico, BH é berço de uma história de vanguarda. A cidade sedia, dentro da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, o primeiro curso superior do Brasil de especialização na área, oferecido, desde a década de 70, pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor). Cercada de lupas e microscópios no laboratório da instituição, a pesquisadora Alessandra Rosado busca o equilíbrio entre o conhecimento científico e a prática diária da conservação. “Não podemos ficar restritos ao ateliê, sem nos preocuparmos com as condições do ambiente onde as obras estão alocadas nem com os fatores que ameaçam a integridade física das peças”, afirma ela, com vinte anos dedicados ao trabalho em acervos culturais. Enquanto a qualificação da mão de obra está restrita a poucos cursos, Minas depende da atuação desses profissionais com mãos divinas para garantir a sobrevivência de seu patrimônio cultural e de sua história.
Fonte: VEJA BH
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