Templos interditados há mais de dez anos revelam descaso do poder público e má gestão da igreja com bens culturais
Rodrigo Cardoso/ IstoÉ
Ela deve constar em todo bom guia turístico de Salvador. Erguida em
1737 em estilo barroco, a Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo,
localizada no centro histórico da capital baiana, ostenta, entre outras
preciosidades, um forro pintado em perspectiva ilusionista. Seu valor
histórico foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) já em 1938. Mas quem se arrisca a subir os 55
degraus que levam à porta da edificação sem antes consultar algum
morador pode se frustrar. O templo, que há meio século serviu de locação
para o filme “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, única
produção nacional a conquistar a Palma de Ouro, em Cannes, não pode ser
frequentado pelo público há mais de uma década. Transformou-se em
cenário de uma triste história que se repete em várias cidades do País,
em que igrejas históricas estão de portas fechadas há anos para missas,
casamentos, batizados ou simples visitação.
RECOMEÇO
Restauradores trabalham na São José dos Pardos, que abriga várias joias do período colonial
A Igreja do Passo interrompeu suas atividades religiosas após o
desabamento parcial do altar-mor do século XVIII ao final de uma
celebração – a Arquidiocese de Salvador não soube precisar a data do
fechamento. “Ela fechou em 1998”, afirma José Dirson Argolo, professor
de restauro da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Quatro anos mais tarde, segundo Argolo, a diocese cedeu o templo
em comodato à Associação dos Cavaleiros da Soberana Ordem Militar de
Malta, que passou a discutir o restauro da estrutura e dos bens
artísticos do local. Em 2003, um projeto de restauração orçado em R$ 4
milhões chegou a ser aprovado pelo Ministério da Cultura, mas foi
arquivado por falta de recursos. O tempo foi passando, a deterioração do
templo se agravou e, no ano passado, a Mitra soteropolitana pôs fim ao
comodato. “Hoje, a igreja apresenta sério comprometimento elétrico, do
telhado, e de parte do assoalho, o que impede a sua abertura”, afirma o
padre Jair Arlego, ecônomo da diocese.
Há 15 dias, um novo projeto de restauro da Igreja do Passo foi
entregue ao Iphan. A ação de cupins e a umidade deterioraram ainda mais
os forros, altares, pinturas e azulejarias. Custo atual da obra: R$ 10
milhões. Para evitar esse abandono, especialistas afirmam que é
necessária uma política de preservação, praticada pelo poder público e
pela Igreja Católica. “A troca de uma telha de barro quebrada, às vezes,
evita o restauro de uma igreja”, diz Marcos Paulo de Souza Miranda,
coordenador das promotorias de Justiça de defesa do patrimônio cultural e
turístico de Minas Gerais. Infelizmente, as ações no Brasil são, na
maioria das vezes, reativas. Em Minas Gerais, há entre 100 e 150 igrejas
que sofreram algum tipo de intervenção do Ministério Público por mau
estado de conservação. Para reverter essa situação de completo abandono
de uma delas, a Nossa Senhora do Rosário, em Januária, a promotoria de
defesa do patrimônio mineira passou nove anos costurando um acordo entre
o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais (Iepha) e a arquidiocese local, o que só ocorreu em junho
passado.
Segunda igreja mais antiga de Minas, datada de 1688, a Nossa Senhora do
Rosário está fechada há pelo menos 18 anos. Seu abandono também pode ser
explicado por sua localização. O templo está situado em uma região
praticamente deserta, tomada por chácaras e, com o passar dos anos, as
pessoas se mudaram da região. “Então, não é que a Igreja Católica
abandou a Nossa Senhora do Rosário. Não tinha gente morando ali, existia
só o templo, e os padres alemães que cuidavam dela saíram de lá”,
afirma o bispo local, dom José Moreira da Silva. Até o final do ano, o
Iepha deverá elaborar um projeto de restauro para o templo e, em 2013,
os envolvidos no projeto voltam a sentar para discutir a execução das
obras.
Responsável pela Basílica Nossa Senhora da Penha, no Recife, que
corria risco de desmoronar caso não fosse interditada pela Defesa Civil
em 2007, frei Luís de França Fernandes reconhece a culpa de sua
instituição. “Nós, sacerdotes, não temos consciência de preservação
patrimonial”, afirma. Erguida por frades capuchinhos franceses em 1882 e
única no Recife em estilo coríntio, a basílica encontra-se em fase de
restauração. A primeira etapa das obras se encerrou neste mês e custou
R$ 4,7 milhões. Mais R$ 3,2 milhões serão gastos com a segunda fase, que
deverá durar mais dois meses. No total, a igreja deverá permanecer
fechada por oito anos. O empenho no processo para reabrir as portas fez o
administrador do templo contratar um especialista em restauro, uma
iniciativa rara entre seus pares. “Ele se tornou funcionário permanente
da igreja e será responsável por realizar manutenções e intervenções
periódicas nela”, diz frei Fernandes.
PATRIMÔNIO
Correndo o risco de desmoronar, a Nossa Senhora da Penha, no
Recife, fechou as portas em 2007 e agora está sendo restaurada
Na mineira Ouro Preto, as obras na igreja
São José dos Pardos, fechada há cerca de 20 anos, só começaram há dois
anos. Ali, um projeto de restauração que levou cinco anos para ser
aprovado e uma tentativa frustrada de patrocínio junto ao Ministério do
Turismo acabaram privando fiéis e turistas de desfrutar do templo.
“Faltou, por longos anos, vontade política e da diocese para cuidar
desse patrimônio”, afirma Gabriel Gobbi, secretário de Patrimônio e
Desenvolvimento Urbano de Ouro Preto. A São José dos Pardos é de 1730.
Nela está hospedado o altar-mor considerado o primeiro trabalho
documentado de Aleijadinho. Com o patrocínio do Banco Nacional de
Desenvolvimento (BNDES), R$ 1,2 milhão está sendo investido na
restauração. Telhado, piso, sistema de som e incêndio, rede elétrica e
bens artísticos já estão prontos e restam, ainda, trabalhos de pintura, a
reurbanização do entorno e reparos na sacristia. Acredita-se que até o
fim do ano a rotina de celebrações retorne ao local. Nas proximidades, a
Igreja de Santa Efigênia – a religiosa é tida como padroeira, protetora
e guardiã dos lares – também se encontra fechada há cinco anos.
Historiador e diretor do Museu de Arte Sacra da cidade, que supervisiona
as obras de restauração, Carlos José Aparecido de Oliveira convive com
comentários constrangedores de devotos da santa descontentes com a
situação do templo. “Eles dizem: ‘Engraçado, a gente reza tanto para
Santa Efigênia para ela cuidar da nossa casa, só que a própria casa dela
está fechada. Como pode?’”, diz ele. Situação que nem a fé explica.
Fotos: Neno Vianna/Barrocopress; www.TipsImages.it
Fotos: Cristiano Couto/Hoje em Dia/Folhapress; divulgação
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