Na noite de 21 de maio, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, abriu as portas (gratuitamente) ao público. Ao todo, foram 18.442 as pessoas que se deslocaram até às Janelas Verdes, um número inédito até para um organismo como o MNAA, habituado a receber muitas visitas. Desde que a Noite dos Museus se começou a celebrar no interior do antigo Palácio Alvor, não existe registo de uma enchente assim. O número de visitantes era tal que, só a muito custo, é que se conseguia caminhar pelos corredores. “Parecia que se estava no Vaticano, nas filas a andar”, lembrou Teresa Sousa e Moura, conservadora-restauradora do departamento de pintura do museu.
Naquele dia 21, foram muitas as pessoas que se deslocaram até ao MNAA para verem a nova exposição, inaugurada a 18 de maio, “Obras em Reserva”, que mostra um lado do museu que raramente se vê. Mas, para a grande maioria, o motivo da visita era outro. “Onde é que está aquele quadro que temos de ver?”, perguntava-se entre pinturas. O quadro que tinham de ver era A Adoração dos Magos, de Domingos Sequeira.
Em outubro do ano passado, o MNAA lançou uma campanha de angariação de fundos inédita em Portugal para poder comprar A Adoração dos Magos, um quadro que se encontrava na posse dos descendentes do Duque de Palmela e que faz parte de uma série de quatro pinturas religiosas de Domingos Sequeira, um dos nomes maiores da pintura portuguesa do século XIX. O MNAA possui na sua coleção os desenhos preparatórios e finais das quatro telas, mas não as respetivas pinturas a óleo.
A iniciativa gerou um movimento de cidadania “exemplar” em Portugal, como salientou o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes. Pequenos e graúdos, entidades e particulares, todos se juntaram para colocar o Sequeira “no lugar certo”. E conseguiram. Pixel a pixel, e três dias antes do previsto, o MNAA conseguiu angariar os 600 mil euros necessários para a compra da Adoração dos Magos.Agora, o Sequeira já está no sítio certo, mas sem nenhum sentimento de posse. O quadro já não é de ninguém — é de todos.
O departamento de restauro de pintura fica nas catacumbas do museu. Para lá chegar, é preciso descer escadas e atravessar corredores repletos de estátuas medievais
Muito em breve, A Adoração dos Magos vai ocupar o seu lugar no terceiro piso do museu, rodeado de pinturas de outros mestres portugueses. Mas enquanto isso não acontece, está a ser restaurado nas catacumbas do MNNA por Susana Campos e Teresa Sousa e Moura, duas conservadoras-restauradoras do departamento de pintura que têm a missão de lhe devolver o brilho (e as cores) originais. De bata branca, rodeadas de pinturas portuguesas do século XVI e XVII, as duas não hesitam em admitir que sentem o peso da responsabilidade. A expectativa é grande em volta do Sequeira, e elas sabem disso.
A pressão de restaurar Sequeira
Quando lhe disseram que tinha de restaurar A Adoração dos Magos, Teresa Sousa e Moura disse logo que “sozinha não”. “Queria o apoio de outra pessoa. É um quadro que é de todos, em que toda a gente participou e do qual toda a gente está à espera”, admitiu ao Observador. A ela juntou-se então a colega Susana Campos, “com mais experiência”, que também nunca se esquece que o Sequeira é, afinal, o Sequeira.
“Toda a gente está a acompanhar este processo, porque toda a gente participou para comprar e toda a gente quer saber como é que está. É de todos, e esse pensamento está sempre presente. Marca a diferença nesta pintura, porque toda a gente sente isto. Quando se fala nela, quando se trata dela — tem-se sempre esse pensamento.”
“Quer dizer, a minha avó participou para isto!”, disse por sua vez Teresa, entre risos. “Sente-se o peso. Agora já acho que não, porque no início é como relação amorosa. Vai evoluindo, vai evoluindo até que isto, que é de todos, também se torna nosso. Cria-se uma afinidade, porque nós tocamos, nós mexemos, nós conhecemos os pormenores em primeira mão. Pixel a pixel!”
"O início é como relação amorosa. Vai evoluindo, vai evoluindo até que isto, que é de todos, também se torna nosso. Cria-se uma afinidade, porque nós tocamos, nós mexemos, nós conhecemos os pormenores em primeira mão."
Teresa Sousa e Moura, conservadora-restauradora do MNAA
É por essa relação que criam com todas as pinturas que restauram (e pelo tempo que passam com elas) que Teresa e Susana nunca se esquecem de um quadro que lhes passa pelas mãos. “É que nós vamos ao íntimo do pintor. Pelo menos, é assim que eu sinto…”, admitiu a conservadora-restauradora do MNAA. “Como é que ele pensa, como é que ele sobrepõe as cores, como é que ele faz o desenho de um determinado panejamento, como é que sobrepõe as camadas, as soluções que às vezes dá às coisas…”
Restaurar um quadro é um trabalho moroso. Pode demorar um mês, mas esse mês também se pode transformar num ano ou até em dois. Tudo depende da pintura, do seu estado de conservação e dos restauros de que já foi alvo, que muitas vezes dificultam o processo de limpeza. O trabalho tem de ser feito com cuidado, passo a passo, camada por camada, porque um pequeno erro pode ser fatal. Por isso, antes de começar a limpar, é preciso estudar a pintura. Com A Adoração dos Magos também foi assim.
“Antes, vimos as duas a pintura”, explicou Teresa Sousa e Moura. “Estudámo-la, vimo-la por trás, que é uma coisa muito importante. Tínhamos de ver mais ou menos se tinha tido muitas ou poucas intervenções, e achámos logo que não tinha nada de especial.” Além disso, aperceberam-se que o quadro tinha sido muito bem conservado e que “não tinha um rasgão”. Mas a grande surpresa veio quando o desemolduraram, e se aperceberam que a grade (o suporte onde a tela está esticada) era original e que, muito provavelmente, a pintura nunca foi restaurada.
“O facto de a pintura estar muito original, com poucas intervenções, não é vulgar”, disse Susana Campos. E ainda é menos vulgar quando se trata de um quadro que sempre esteve na posse de um privado, longe das condições ideias de um museu. “Para além disso, a pintura é grande, e as pinturas grandes estão mais sujeitas a rasgões, a pancadas, a algum acidente, a algum dano, que ela não teve. Podia estar em piores condições mas, pelos vistos, esteve sempre num ambiente muito confortável, porque realmente sofreu muito pouco.” E isso só facilita o trabalho.
Para lá da poeira, o céu azul
O trabalho de um restaurador é sempre um trabalho de descoberta. À medida que se vão limpando as diferentes camadas — primeiro a de poeiras e gorduras e depois a de verniz –, vai-se desvendando a pintura original. Depois de limpa a camada “de poluição atmosférica”, vai-se “limpando o verniz, camada sobre camada”. “Conseguimos fazer uma limpeza por camadas, da camada de superfície à camada original”, explicou Susana. A limpeza, química, é sempre feita com solventes orgânicos, feitos em laboratório.
Infografia: Andreia Reisinho Costa
Começa-se sempre “por um cantinho”, por uma zona que, à partida, não será problemática e que não “interfere tanto com a leitura” da obra. “Quer dizer, não íamos começar pela virgem, logo assim”, admitiu Teresa, referindo-se ao quadro de Sequeira. “Começámos por um canto, por um sítio mais recatado para que, se acontecesse qualquer coisa, tivéssemos segurança e margem de manobra para recuar. Depoisvamos arriscando e vamos limpando as cores que nós sabemos que são mais resistentes.”
Essas cores mais resistentes são as mais claras, como o branco. “São as mais estáveis e as mais resistentes”, explicou Susana. “Os vermelhos são, muitas vezes, sensíveis. São cores com as quais vamos ter mais cuidado. Quer dizer, temos cuidado com todas, mas com estas temos cuidados redobrados porque sabemos que são as mais sensíveis. Depois fazemos os testes por cores e vamos um bocadinho aqui, um bocadinho ali. Conforme as zonas que vamos limpando, também vamos escolhendo a zona seguinte e vamos conhecendo a pintura.”
"É uma coisa que se vai fazendo - devagar, lentamente, conhecendo a pintura, olhando, comparando. E também usamos os conhecimentos que já temos da nossa prática ou de outras pinturas que existem do artista."
Susana Campos, conservadora-restauradora do MNAA
Feitas as primeiras experiências, já é possível avançar para a fase seguinte, que é a de remoção completa do verniz. “Já experimentámos bastantes cores –os encarnados, os azuis –, fomos a várias zonas, ao centro, aos cantos, e agora estamos suficientemente à vontade para avançar com a limpeza”, disse Teresa Sousa e Moura. Mas, a verdade, é que não é preciso ir muito mais longe para saberem como é que o quadro vai ficar, apesar de poderem sempre surgir imprevistos. “Já temos uma noção e, é por isso, que nos entusiasmamos bastante quando falamos disto”, admitiu Teresa entre risos. “Já estamos a ver o final, que vai ser espetacular!”
Espetacular e completamente diferente. Os tons amarelos, causados pela sujidade superficial, vão dar lugar a azuis, rosas, vermelhos — cores que, sem o restauro, nunca se notariam. Os pormenores — os mantos brocados, os veludos, as joias, os camelos e a multidão que se desvanece no horizonte — vão-se tornar mais nítidos, e isso já é visível nos pequenos retângulos que as duas conservadoras-restauradoras foram limpando nas últimas duas semanas. “As cores vão mudar muito e vai-se ver o original. Finalmente vai-se ver o original, que estava dissimulado pelas camadas que alteram as cores e os pormenores”, esclareceu Susana Campos.
Susana Campos tem uns óculos "especiais", que permite ver o mais pequeno dos pormenores
Uma vez terminada a limpeza, Teresa e Susana aplicarão uma nova camada de verniz que, para além de ajudar a conservar a pintura, tornará as cores mais saturadas. Mas escolher o verniz certo pode ser uma verdadeira dor de cabeça. Existe pelo menos uma dezena de vernizes disponíveis no mercado, e Teresa e Susana têm podem ainda fabricar um de raiz só para A Adoração dos Magos.
Quando lhes perguntámos se já tinham um favorito, olharam uma para a outra comprometidas. “Estamos ainda a pensar…”, acabou por responder Susana Campos. “Já conversámos sobre o assunto, mas ainda não chegámos à decisão final. Mas acho que vamos decidir com o avançar do tratamento.”
Neste momento, a maior preocupação das conservadoras é encontrar um verniz estável, que não amareleça muito rapidamente. Só que, como A Adoração dos Magos é uma pintura virgem isto é, sem restauros, as opções são muito maiores. “As intervenções provocam irregularidades e diferentes comportamentos na obra, que depois temos de regular. Quando há intervenções diferentes, é mais difícil de atingir esse equilíbrio, e nós não temos esse problema aqui”, explicou Teresa. “Esta pintura é só maravilhas!”, exclamou, rindo-se. “Depois ficamos nos pícaros porque é fácil! Bem, não devia dizer isto…”
"Quando há intervenções diferentes, é mais difícil de atingir esse equilíbrio, e nós não temos esse problema aqui. Esta pintura é só maravilhas!"
Teresa Sousa e Moura, conservadora-restauradora do MNAA
Mas nota-se que estão pela maneira como olham para o quadro — um quadro que é de todos, mas que também é um bocadinho delas. “Isto é um bombom!“, disse Teresa, e Susana concordou.
Apesar de o restauro servir para restituir ao quadro a sua beleza original, este também permitirá uma leitura “mais apurada” e “mais fiel” da Adoração dos Magos. Uma vez restaurado, os conservadores de pintura do museu vão poder olhar para o quadro tal e qual ele era quando Domingos Sequeira o acabou de pintar em 1828 e tirar daí novas conclusões. “Permite um melhor estudo da obra, porque podemos comprar com outras obras dele”, explicou a conservadora. “E dá-nos mais pistas para o conhecimento da técnica pictórica do pintor”, acrescentou Teresa, sem conseguir evitar deixar escapar um “vai ficar lindíssimo!“.
O restauro já não é o que era. E ainda bem
Mas nem todos os quadros são fáceis como o Sequeira. Por vezes, as conservadoras têm de passar longos meses com a mesma pintura, como aconteceu com o tríptico de Pieter Coecke van Aelst, um artista flamengo do século XVI, que o MNAA emprestou em 2013 ao Metropolitan Museum of Art (Met), em Nova Iorque. “O retábulo do van Aelst, que foi para o Met, tinha dois metros por dez de área e teve muitos problemas. Não era um trabalho fácil (há trabalhos mais fáceis do que outros). Era uma peça com muitos restauros antigos, muitos bons até. O problema às vezes na nossa intervenção é os restauros antigos, que este não tem, daí ser um restauro mais fácil e mais rápido nesse aspeto, porque está virgem“, contou Susana.
Susana Campos (à esquerda) e Teresa Sousa e Moura (à direita) ainda têm um mês de trabalho pela frente
“Os restauros antigos levantam muitas questões. Às vezes temos de decidir se vale a pena levantar ou não [deixar à mostra o que restauros antigos taparam], se se justifica e que razões temos para o fazer. Às vezes os restauros até são bons, mas pode haver incompatibilidades de materiais. Há materiais que não são tão estáveis ou que se degradam com o tempo, e nós temos de ponderar todos esses fatores. Às vezes há restauros que alteram o original, e nós temos de saber.”
O tríptico de van Aelst é uma das muitas peças onde os restauradores anteriores decidiram mexer no original. “Havia um repinte de um pé que fazia parte da história daquela pintura. A dada altura acharam que aquele pé devia ser tapado. Nós aqui no museu trabalhamos com imagens divulgadas, estudadas”, salientou Teresa. “Que fazem parte da história!”, completou Susana, acrescentando que “divulgar uma coisa que foi feita há muitos anos é uma decisão que não se toma de ânimo leve”. “Não é uma decisão individual, da Teresa ou da Susana. Ou da Teresa e da Susana. É uma decisão que tem sempre de passar por outras pessoas, neste caso dos conservadores de pintura.”
Isto acontecia porque, antigamente, os restauradores não tinham a formação que têm hoje. Muitos deles eram pintores, que achavam que tinham alguma liberdade artística. “Antigamente, as coisas eram feitas de forma empírica e, como os restauros eram feitos por pintores, se fosse preciso inventar, inventavam. E se achavam que não era bem aquilo, alteravam”, disse Susana. “Os critérios e os concertos do que é conservação e restauro não são os de hoje.”
"Antigamente, as coisas eram feitas de forma empírica e, como os restauros eram feitos por pintores, se fosse preciso inventar, inventavam. E se achavam que não era bem aquilo, alteravam."
Susana Campos, conservadora-restauradora do MNAA
“A nossa formação é na área das ciência, temos física até. É muito importante. E depois há uma série de métodos de exame e análise física e química, o estudo dos materiais e das técnicas. O que faz um conservador-restaurador atualizado é isso, e isso faz muita diferença”, explicou Teresa. Além disso, dentro da conservação e restauro existem várias especializações, porque cada peça é cada peça e os materiais usados são diferentes. “Temos de os conhecer bem”, concluiu Susana Campos.
“Nós aqui no museu fazemos mais conservação do que restauro. ‘Conservar’ é conservar os materiais que existem, mexendo o menos possível”, acrescentou por fim Teresa. Se o restauro do Sequeira tivesse acontecido noutros tempos, a tela tinha sido logo separada da grade original, apesar de esta estar ainda em boas condições. Uma operação que, por si só, é extremamente violenta para a pintura, realizada num suporte que por si só é frágil. No MNAA é diferente — a intervenção é sempre a mínima possível.
Teresa Sousa e Moura e Susana Campos ainda têm um mês de trabalho pela frente, mas estão ansiosas por ver o resultado final e por saber a opinião de todos os que contribuíram para a compra do Sequeira. Estão a tocar nos “pixeis que são de muitos”, e sentem esse privilégio. Mas uma coisa é certa — nunca se esquecerão da Adoração dos Magos, por mais anos que passem. Porque, afinal, “quase todas as pinturas marcam”, como garantiu Susana. “Umas por umas coisas, outras por outras — mas todas marcam.”
Fotografia de Patrícia Amaral
Texto de Rita Cipriano, grafismo de Andreia Reisinho Costa.
Fonte: Observador
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