FOTO JOSÉ CARLOS CARVALHO
Padre de São Cristóvão recorre a financiamento coletivo, venda de telhas, restauro ao vivo e fado para recuperar telhado, telas e paramentos
Texto de Carolina Reis
As mãos estão ligeiramente suadas pelo entusiasmo e pela ansiedade. Caetano de Oliveira, 23 anos, está sentado em frente ao altar da centenária igreja de São Cristóvão, na Mouraria, com alguma impaciência. Em cima dos joelhos tem um embrulho castanho do qual não se quer separar. Percebe-se, pelo cuidado com que o segura, que é algo importante. Está à espera de o entregar a outras mãos seguras. Não se trata de um assunto ligado à religião. Não foi a fé que o trouxe aqui. Vem deixar uma telha para ajudar a recuperar o decadente telhado do templo e nela fez um autorretrato. “Sempre quis ter uma obra de arte num monumento e esta é uma oportunidade.”
O jovem artista plástico, habituado a trabalhar azulejo biselado, refere-se à iniciativa da paróquia, de vender telhas, por 20 euros, que qualquer pessoa pode decorar da maneira que quiser, para conseguir angariar os 140 mil euros necessários para arranjar o telhado em risco. É esta a obra mais urgente nesta igreja, que começou a ser construída no início do século XIII, sobreviveu ao terramoto de 1755 e que vê agora um movimento de cristãos e não-cristãos a juntarem-se à sua volta para a recuperar.
Testemunho do Barroco, a igreja de São Cristóvão abriga relíquias patrimoniais entre as quais se destacam as 36 telas de Bento Coelho da Silveira, pintor do reino de D. Pedro II, e paramentos (roupa usada pelos padres durante a eucaristia) com 350 anos. Para os salvar, há um projeto de restauro que apela à comunidade online: foi feita uma campanha de crowdfunding para angariar os cinco mil euros necessários para recuperar a tela principal. Além disso, a igreja e os moradores multiplicam-se em dezenas de ações, de ateliês de restauro das telas feitas ao vivo a noites de espetáculos ou visitas guiadas pelo interior do edifício. Hoje é dia de novo percurso pelo património cristão da Mouraria que termina nos túmulos, telas e labirintos dentro de São Cristóvão. E assim uma igreja fechada tornou-se viva.
“Desde que iniciámos este movimento passaram por cá 15 mil pessoas e foram doados cerca de 25 mil euros”, explica Edgar Clara, o jovem padre por trás do projeto de recuperação da igreja. O movimento Arte por São Cristóvão é fruto de uma candidatura ao orçamento participativo da Câmara Municipal de Lisboa, que resultou num fundo de 75 mil euros destinado a uma estratégia de marketing para divulgar o património da igreja. “Recebemos o dinheiro mas só o podíamos gastar num plano de comunicação, o que não deixa de ser um contrassenso.”
Habituado às lides da comunicação, por ter trabalhado num jornal católico e sido assessor de imprensa do Patriarcado de Lisboa, Edgar Clara juntou diferentes grupos de pessoas em vários tipos de ações. Com a associação Renovar a Mouraria foi desenvolvida uma receita de biscoitos de cardamomo, à venda na igreja e na loja A Vida Portuguesa, o local onde foi feito o lançamento do projeto. Aos fadistas, frequentadores do bairro, foi buscar as vozes e as guitarras para fazer arraiais e noites de fado em que “a igreja ficava aberta até à uma da manhã”.
E trouxe para dentro do espaço os moradores que têm outra fé e os que não têm fé nenhuma. Muitas vezes, são eles que para lá encaminham os turistas. “Estamos num apartamento de airbnb aqui mesmo em frente e não estávamos a pensar entrar, mas uma vizinha disse-nos várias vezes que tínhamos de vir. É muito impressionante, a idade das obras, mas mais ainda o estado em que estão”, diz Trieja Akkerman, uma turista do norte da Holanda.
“ÚLTIMA CEIA” OCULTA NUM BURACO
Trieja, acompanhada pelo marido e por duas filhas, assiste, atenta, ao restauro de uma das telas de Bento Coelho da Silveira. A do centro, presa por cordas em cima do altar-mor, é o ex-líbris. Uma ‘Última Ceia’, de 2,6 por 4,75 metros, inspirada em Rubens, esteve ‘desaparecida’ várias décadas até à chegada de Edgar Clara. “Tinha visto fotografias dos anos 50 de uma ‘Última Ceia’ e comecei à procura. Quando percebi onde estava, reunimos técnicos para a retirar. Foi aí que vimos o seu estado”, conta ao apontar para o local onde a encontrou: um buraco estreito, por trás do altar. “Acreditamos que estava aqui porque subia e descia durante a missa.” Os cinco mil euros conseguidos com o crowdfunding vão permitir que seja levada para restaurar em laboratório.
Já a recuperação das outras 35 é feita ao vivo, dentro da igreja, com curiosos e turistas a serem convidados a entrar, a ficar, a perguntar. Barulho em vez do silêncio. Centenas de pessoas em vez das habituais 30 que assistem à missa. Muitas perguntas à conservadora que, no local, trata do restauro, uma tela de cada vez. “É um desafio. É uma peça muito interessante, a nível da projeção, porque se percebe que foi pintada para ser olhada de baixo para cima. O mais difícil foi perceber quais eram os materiais usados, para a recuperar com o máximo respeito pelo artista”, explica Ana Ferreira.
Depois desta, Ana deverá debruçar-se dentro da igreja sobre outras telas. Espera-se que venham mais curiosos, que comprem um pin, um pacote de biscoitos de cardamomo, ou uma telha.
Fonte: Expresso
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