quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O Ouro Azul

No século XVIII, existia a expressão portuguesa "é como ouro para o azul". Sua origem vem da combinação de talhas de madeira dourada com painéis de azulejos azuis nas igrejas joaninas. Sinônimo de algo realmente muito bom, a expressão define bem a qualidade do conjunto de azulejos da Igreja Nossa Senhora da Glória do Outeiro, no município do Rio



TEXTO ALESSANDRO ALVIM
FOTO DELFIM FREITAS


Os painéis da Igreja Nossa Senhora da Glória do Outeiro são uma joia da arte da cerâmica portuguesa em terras cariocas, segundo Maria Eduarda Marques, professora de História da Arte da PUC-RJ:
– As 8.800 peças que cobrem as paredes da sacristia, da nave, do altar-mor e do coro alto são consideradas muito refinadas. Os azulejos vieram de Portugal e foram montados na igreja entre 1730 e 1740, período da Grande Produção portuguesa de azulejos – explica.

Para Dora Alcântara, ex-professora de arquitetura da FAU-UFRJ e especialista em azulejaria, os painéis da Glória são representantes ímpares da cerâmica colonial:
– Sem dúvida, os azulejos de autoria do artista português Valentim de Almeida compõem o melhor conjunto do período na cidade do Rio. Os desenhos são azuis sobre fundo branco e emolduramentos, em que predomina a composição barroca. Eles impressionam pela qualidade e quantidade – explica a pesquisadora.


Cânticos dos Cânticos

Os azulejos da nave e do altar-mor retratam o "Cântico dos cânticos”, um livro do Antigo Testamento com temática centrada no amor. Os dois personagens da obra, o amado Salomão e a amada Sulamita, são retratados nos painéis da igreja em encontros fortuitos, como explica a professora e pesquisadora Maria Eduarda:

– São tertúlias, reuniões com um objetivo: o amor. A história é muito lírica, mas sem uma narrativa linear. É uma releitura poética – esclarece.




As cenas são sempre campestres e têm Sulamita como a figura principal. Ela aparece com plumas na cabeça e está sempre cercada por amigas. A única figura masculina é Salomão, que sempre está cercado de anjos. Nos painéis, ambos são desenhados em metáforas que representam o amor matrimonial, como detalha Dora Alcântara:
– Em um dos desenhos, Sulamita toca harpa enquanto o amado a admira. A música é a poesia cantada, significando o amor recitado – diz a pesquisadora.

Personagens ressignificados

Acreditava-se que os profetas estavam representados nos painéis do coro alto. Mas a pesquisadora Dora Alcântara relata que se trata de alguns personagens da "Genealogia de Jesus”, como consta no Evangelho segundo São Mateus. Os seis personagens pintados são: Aram, Naazam, Judá, Isaac, Aminadab e Fares. Eles integram a linhagem de José, pai de Jesus.

Os dois painéis curvos localizados no coro alto

Nos anos 40, a colocação do órgão no coro alto encobriu dois dos seis personagens bíblicos, Aram e Naazam. Os outros quatro estão representados em dois painéis curvos na lateral do coro. Esses dois conjuntos de azulejos não podem ser visitados pelo público. A equipe de fotografia do GLOBO utilizou uma técnica especial de reprodução para planificá-los.

JUDAS E ISAAC No Evangelho segundo Mateus, existem 42 gerações até Jesus. Judá é neto de Isaac



AMINADAB E FARESAminadab é filho de Arão, é bisneto de Fares, que está no mesmo painel. Fares é filho de Judá



Caça e lazer na sacristia

Na sacristia, os azulejos têm temática fidalga, sem referência bíblica. São retratados nobres em momentos de lazer: caça, passeio ao ar livre e a cavalo. Para a pesquisadora Dora Alcântara, faz muito sentido essa representação:
– Quando foram instalados, no século XVIII, a sacristia tinha função civil e social. Lá não eram realizados cultos. Por isso, os desenhos se justificam – conclui.


Cenas de caça ao javali em um dos painéis da sacristia


A pesquisadora ainda destaca que, mesmo não tendo temática religiosa, os painéis têm o mesmo rigor estético dos da nave e do coro alto:
– Os personagens retratados usam vestimentas indicadas para um nobre da época. Todos usam chapéu de três pontas, por exemplo. Até mesmo a caça ao javali, que foi representada pelo artista, era considerada a mais perigosa e exótica pela nobreza. Valentim de Almeida teve muito cuidado na execução dos desenhos – avalia Dora Alcântara.


Nobres retratados conversando em um terraço

Processo artesanal

Segundo o especialista Alexandre Pais, do Museu Nacional do Azulejo de Portugal, não há muita informação sobre o processo de encomenda do conjunto de azulejos da Igreja da Glória:
– O que sabemos é que Valentim de Almeida não veio ao Brasil. Muito provavelmente, ele recebeu as medidas das paredes e calculou as unidades necessárias. Não sabemos se a temática foi encomendada ou escolhida pelo artista, mas os desenhos foram baseados em gravuras da época. Processo comum entre pintores de azulejos da grande produção Joanina – explica o especialista.

O PROCESSO
1 de 7

1.
No campo, o barro é passado em crivo, espécie de peneira

2.
Na olaria, é amassado para retirar as bolhas de ar. Vira uma pasta cerâmica

3.
A pasta é aplicada em formas do tamanho dos azulejos. Depois, são secas ao sol

4.
São molhadas em óxido de estanho e de chumbo. Ficam cinza e rugosas

5.
O pintor marca a parte de trás com letras e números, isso permite montar o painel

6.
As peças são ordenadas no cavalete. A face que foi banhada em óxido é pintada

7.
As peças vão ao forno a lenha por 26 horas, a 1.000 graus. Depois, estão prontas

Já a arquiteta Renata Ferrari Curval afirma que o pintor Valentim de Almeida teve uma carreira bastante longa e foi, com certeza, um dos artistas que mais produziu azulejos para o Brasil
– Valentim viveu de 1692 a 1779, produzindo muito e formando outros pintores. Dentre suas obras, destacam-se os painéis do Convento de Cairu, da Misericórdia, ambos em Salvador, e os da Igreja Nossa Senhora da Glória do Outeiro, no Rio. – explica a especialista.

VISITE A NAVE

Os painéis da nave fazem uma barra horizontal azul, compondo o ambiente. Confira no 360 graus360ºExplore


Para quem deseja conhecer o trabalho de Valentim de Almeida, a visitação pode ser feita durante o funcionamento da igreja, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h, e à tarde, das 13h as 17h. Aos sábados, das 9h às 12h. O endereço é Praça Nossa Senhora da Glória 26, Glória.RJ

A entrada é gratuita. Podem ser vistos os painéis da sacristia, da nave e do altar. Os do coro alto são fechados ao público. Para Maria Eduarda, as obras de Valentim de Almeida merecem ser apreciadas:
– A barra azulejar leva o olhar do espectador para baixo, combina com a arquitetura e as talhas de madeira da igreja. Sem dúvida, é uma combinação que só existe nas igrejas joaninas portuguesas – ensina a professora.

OURO AZUL

INFOGRAFIA Alessandro Alvim, Delfim Freitas e Ayrton Teshima


FONTES Maria Eduarda Marques, professora de História da Arte da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e ex-diretora da Espirito Santo no Brasil; Dora Alcântara, professora aposentada de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e especialista em azulejaria; Fabiano Maia, Mestre em Avaliação e historiador - FGV; Renata Ferrari Curval, Faculdade de Arquitetura Imed-RS; Alexandre Pais, do Museu Nacional do Azulejo, Lisboa, Portugal; Monsenhor Sérgio Costa, Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro

Fonte: O Globo

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