Mogi das Cruzes, a caminho do Vale do Paraíba e das Minas Gerais, foi importante centro de atividades culturais no período colonial. Hoje seu patrimônio cultural tem no conjunto carmelita seu ponto de resistência, pois muitas de suas obras coloniais estão dispersas. Políticas de meados do século XX aviltaram aqueles centros culturais coloniais em detrimento do progresso industrial que, à maneira do ocorrido no século XIX, encobriu com tintas brancas as belezas das tintas e dourados barrocos. Passado o modismo neoclássico imperial, a República se pautou no positivismo, deixando à mingua os conventos religiosos e as antigas matrizes em taipa de pilão, que foram substituídas por igrejas neocoloniais. Nestas mudanças as imagens dos santos barrocos foram trocadas por santos de gesso e os altares levados para outras localidades, como o da antiga matriz mogiana que se encontra na igreja N. S. do Brasil, na Av. Europa, capital paulista.
Foi um apelo do arquiteto Lúcio Costa, o criador de Brasília, que salvou o conjunto carmelita de Mogi das Cruzes. O Iphan restaurou o conjunto devolvendo-lhe o aspecto colonial que vemos hoje, removendo inclusive uma pequena torre da igreja da Ordem Terceira. Na década de 80 ficou conhecido no meio musical como o local onde foram encontradas, por Régis Duprat, as mais antigas partituras de obras musicais assinadas. No final do século XX foi a vez das pinturas da igreja da Ordem Terceira serem amplamente divulgadas, ainda que a comunidade tivesse consciência da importância de tais obras. No início do século XXI avançam os restauros internos e se incrementa o Museu das Igrejas Carmelitas, que abriga o retábulo jesuítico da capela de Santo Alberto. Da mesma maneira que se festeja as partituras musicais de cerca de 1730, deve-se divulgar e apreciar naquele retábulo uma das mais antigas pinturas da plástica colonial o São João Batista dos meados do século XVII.
Tenho mantido diferentes contatos com especialistas e responsáveis pelas obras coloniais mogianas; sempre fui ali muito bem recebido e pude assim pesquisar o rico acervo carmelita da cidade e dos arredores, como a Fazenda Parateí dos beneditinos, Santo Alberto e Santo Ângelo. Também dos historiadores, pesquisadores e equipe do restauro tenho tido apoio para minhas pesquisas sobre a arte colonial paulista e sua divulgação. Em recente visita, em abril de 2007, tive acesso às imagens do acervo do museu, obtendo gratas surpresas e possíveis descobertas a se confirmarem.
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As imagens atribuídas a Frei Agostinho de Jesus
Examinando três esculturas em barro, um Santo Antônio, e duas imagens da Virgem Maria, uma Imaculada Conceição e uma da Assunção, surpreendi-me ao reconhecer, inicialmente pelas bases, possíveis imagens de Frei Agostinho de Jesus. Este beneditino é considerado pelos estudiosos de arte sacra colonial - ou seja, imaginária setecentista em barro - o primeiro escultor brasileiro. Nasceu no Rio de Janeiro em 1610 e foi discípulo de outro beneditino que era santeiro português e por coincidência tem o mesmo nome de Agostinho; ambos morreram em 1661. Sabe-se que o artista europeu veio da região do mosteiro de Alcobaça, centro luso de estatuária sacra e ensinou ao santeiro carioca o ofício de fazer santos em barro na cidade de Salvador, onde existe um convento beneditino. O primeiro, da Piedade, fez importantes obras para todos os conventos beneditos daquela época. O segundo, o de Jesus, veio morar em São Paulo, Santos e Santana de Parnaíba, locais onde deixou extensa obra. Sua influência em todos os santeiros paulistas foi imensa, visto que naquele período pode-se dizer que se fazia apenas santos em barro, mesmo nas oficinas franciscanas e jesuíticas. As atividades dos padres carmelitas como santeiros e mesmo pintores ainda estão em estudos - no caso de outras ordens religiosas, eles estão mais avançados.
Não se tem notícias da atuação deste importante artista colonial em Mogi das Cruzes, pois o levantamento foi feito pelo seu mais profundo pesquisador, o beneditino Dom Clemente da Silva-Nigra. Ele escreveu os primeiros estudos comparativos sobre os dois santeiros, mas não descreve que o monge tivesse atuado em Mogi das Cruzes. No entanto, a proximidade da Fazenda Parateí é um indicativo, já que o artista teria ido para a fazenda que existia em São Caetano, na região paulistana. Porém não necessariamente se exigiria a estadia do artista para se fazer as três imagens, pois, de pequenas dimensões, eram de fácil transporte de Santa de Parnaíba, ou mesmo da capital, para a cidade de Mogi das Cruzes.
Antes de descrever as imagens gostaria de completar que Frei Agostinho de Jesus é indicado pelos especialistas como autor da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Uma família se deslocando para Minas Gerais teria jogado no rio Paraíba do Sul a pequena imagem em barro, de oratório , que teria se quebrado. Em 1717 foi encontrada por pescadores e se tornou a mais popular das invocações de Maria no Brasil. Uma outra imagem, quase idêntica, é padroeira da Argentina sob a invocação de Nossa Senhora de Luján.
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Atribuições das imagens do Museu das Igrejas Carmelitas
A atribuição de uma obra que é descoberta - ou seja, não se sabe ao certo sobre sua origem, não se tem informações sobre quem as encomendou e não têm assinatura - se faz pela aproximação das obras reconhecidamente daquele autor, analisando os aspectos materiais e os estéticos que se denominam de formais. Toda obra de Frei Agostinho de Jesus é em barro e, como atuou em diversas localidades, pode ter colorações diversas como cinza claro ou escuro, assim como avermelhados. O que se caracteriza é a ocagem, sempre muito bem feita. Para que uma imagem em barro não se rompa na queima mais baixa (cerca de setecentos graus) deve ser oca pela base ou por furos na parte posterior da imagem. Quando muito grandes, são apenas ressecadas, de difícil transporte e em geral permanecem onde foram confeccionadas. Estas três em estudos são de fácil transporte.
As bases com anjinhos
As diversas invocações da Virgem Maria requerem anjinhos em suas bases. A isso se chama iconografia, a forma ou símbolos como ela é apresentada. Para a Imaculada Conceição bastam três anjinhos, que o artista sempre usa, e para a Virgem da Assunção, são necessários mais anjinhos - para levá-la para o céu. Esta última imagem do museu chega a ter doze anjinhos de gola - com asinhas na altura do pescoço - rechonchudos, que se acomodam entre nuvens circundadas por quatro volutas. Mais que os anjinhos graciosos, o formato da base, bastante criativo, é que nos indica ser obra de Agostinho de Jesus. Comparando com a Virgem do Rosário, exposta na ocasião da visita do papa Bento XVI no Palácio dos Bandeirantes, na capital paulista, tem-se a certeza: as duas apresentam a mesma configuração quando vistas por baixo. Têm partes retas na parte posterior, e três curvas acompanhando as nuvens na parte anterior. Ainda na base pode-se ver a solução das quatro volutas que sustentam de maneira criativa o peso do barro, enquanto se confecciona a peça de maneira firme. Na mesma exposição está a Nossa Senhora do Montesserrate, da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, com solução surpreendente da base, com uma grande lua em quarto crescente à frente; o trono no qual a Virgem se senta tem configuração semelhante às anteriores, reto na parte posterior, além da ocagem limpa na parte interna. A base da Imaculada Conceição também tem as volutas da mesma maneira que a Virgem dos Prazeres, do Museu de Arte Sacra de São Paulo, descrita por Carlos Lemos. Os anjinhos, espremidos entre nuvens e asas, também conferem. As duas pontas da lua crescente fechando o amassado da túnica apresentam a mesma solução plástica da Conceição do acervo palaciano paulista.
O panejamento
Outra característica que se pode ver ao atribuir ao frei estas imagens é o panejamento ou seja, a maneira de se fazer as roupas, as pregas e como os tecidos são dispostos ou puxados, e como caem na base formando os amassados e pregas. O beneditino opta na maioria das vezes por pesadas curvas em S na parte posterior, que vai da base até a mão onde segura, além do manto, o Menino Jesus. Este elemento plástico em S rima com as volutas da base, levantando visualmente o olhar do fiel. O capricho continua nas mãos bem definidas, assim como os dedos que se entreabrem. Nos braços as mangas podem ser bufantes e os punhos duplos arregaçados.
O Santo Antônio não tem este repuxado da túnica pois usa hábito franciscano, mas os punhos arregaçados e duplos mostram as mãos muito bem feitas.
As faces e cabelos
Em geral têm faces serenas e olhares baixos, parecendo vigiar os fiéis. As pálpebras são duplas e olhos bem elaborados - nos lábios um discreto sorriso. Os cabelos são repartidos sobre a fronte larga, terminando em pontas um pouco desalinhadas. O sentido dos fios de cabelo é elaborado como que em penteados, sulcados pela esteca - ponta de madeira ou metal para sulcar o barro ainda brando. As sucessivas pinturas e repinturas feitas ao longo do tempo podem desfigurar as delicadas faces. O tamanho reduzido das peças, em especial do santo Antônio, mesmo sendo o menos repintado deles, prejudica a visibilidade dos traços faciais que retornariam apenas com restauro ou no olho acurado do especialista.
Conclusões
A mostra no Museus das Igrejas Carmelitas de Mogi das Cruzes é sem dúvida uma acontecimento memorável, combinada com as obras de restauros, por Julio de Moraes, já iniciados pelo altar-mor da igreja terceira e, na sequência, a igreja da ordem primeira. Comemoram-se portanto estas atribuições, que precisam de mais tempo para análises mais aprofundadas, em especial do santo Antônio, mesmo sendo ele datado. A grafia da datação servirá para as análises posteriores: se são realmente de frei Agostinho de Jesus ou se se unem às de outros tantos santeiros setecentistas que dataram suas obras no interior paulista, e mesmo no litoral, onde em São Sebastião também se encontrou uma imagem de Santa Luzia, datada de 1652. A base da Nossa Senhora da Assunção não deixa dúvidas sobre sua autenticidade como uma jóia da escultura colonial brasileira. Pode, portanto, Mogi das Cruzes comemorar este verdadeiro encontro com a melhor arte nacional.
Fonte: Blog do Prof. Dr. Percival Tirapeli doutor e livre-docente, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, autor dentre outros livros, de "Igrejas Paulistas - Barroco e Rococó" e "Arte Sacra Colonial - Barroco Memória Viva" (ambos Imprensa Oficial do Estado/ Editora Unesp),"Patrimônios da Humanidade no Brasil" e "Festas de Fé" (ambos Editora Metalivros, port.-ingl), e Coleção Arte Brasileira (Ibep-Nacional, 5 volumes).
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