segunda-feira, 5 de março de 2012

*Imagens ou esculturas? Entre a expectativa dos fiéis e as necessidades da intervenção*

remoção de repintes numa escultura em madeira policromada


“A imagem sagrada, o ícone litúrgico, representa principalmente Cristo. Não pode representar o Deus invisível e incompreensível; foi a Encarnação do Filho de Deus que inaugurou uma nova economia das imagens… A iconografia cristã transpõe para a imagem a mensagem evangélica que a Sagrada Escritura transmite pela palavra. Imagem e Palavra esclarecem-se mutuamente (…)”[1]

Com este pequeno excerto, podemos considerar o quanto a intervenção de conservação e/ou restauro é sempre complexa e delicada, aumentando a complexidade quando a obra a intervencionar mantém as suas características cultuais e devocionais, sobretudo quando a acção implique a alteração do aspecto estético que os fieis estão habituados a contemplar, no caso em que as obras tenham sido alvo de intervenções anteriores duvidosas e pseudo-restauros que tenham provocado alterações marcantes nas mesmas. Ora, “a obra de arte é, em primeiro lugar, resultante do fazer humano e, enquanto tal, não deve depender para o seu reconhecimento das alternâncias de gosto ou de moda (…)”[2]

Assim, consideramos pertinente abordar aqui de forma sucinta este tema, focando-o essencialmente neste aspecto: Imagens/Esculturas repintadas?  Conviver com elas ou buscar a sua essência original?
Em todas as paróquias esta situação é problemática, pois qualquer de nós, envolvidos na preservação do património cultural, já verificou que não existe praticamente nenhum espaço litúrgico, no qual não exista uma ou mais peças repintadas/repolicromadas, sejam elas bens integrados, sejam móveis, como é o caso específico da imaginária. Na maior parte dos casos serão situações ocorridas em tempos bastante recuados, embora coexistam também situações mais recentes. E, é aí que reside o problema, pois na maior parte dos casos, os fiéis habituaram-se ao aspecto adulterado que a imagem emana, ignorando tal facto. Em muitos casos, nunca conheceram a peça no seu estado original, dificultando pois assim a aceitação de uma intervenção que vá alterar aquilo que lhes é familiar e com que convivem e veneram desde sempre.

O conservador-restaurador nunca pode dissociar escultura e imagem no âmbito da intervenção que efectua, num contexto em que a obra esteja num espaço cultual, porquanto o valor estético e artístico que a primeira encerra está concomitantemente dependente da mensagem da segunda e vice-versa. Para o fiel, o que conta é a imagem. O que ela representa como exemplo de vida de alguém que para si é um arquétipo virtuoso, um modelo a seguir. No entanto, é também a missão do conservador-restaurador contribuir para a (in)formação e educação patrimonial do público em geral e, em especial, do grupo-alvo abordado. Para isso, deverá o mesmo promover acções de sensibilização na paróquia onde irá actuar, a fim de esclarecer dúvidas e afastar receios, no que respeita á intervenção a realizar em determinada peça.

Finalizando esta nossa pequena reflexão, consideramos ser muito importante promover mecanismos de diálogo que permitam, com a boa vontade de todos os envolvidos, diminuir os riscos consequentes da manipulação das obras. Apesar da complexidade que envolve o universo dos bens culturais, podemos concluir que é necessário cimentar uma profunda mudança de mentalidade, quer ao nível dos profissionais envolvidos, bem como dos responsáveis pela tutela e manutenção dos mesmos.
A conservação do Património deve fazer-se a favor da comunidade, com a comunidade e não contra ela.

                                      Eurico Rodrigues Conde
                                    (Conservador-restaurador)

Bibliografia
BRANDI, Cesare, Teoria do Restauro. Edições Orion. Amadora, 2006.
CALVO, Ana, Conservacion y Restauracíon – Materiales, Técnicas y Procedimientos – de la A a la Z. Ediciones del Serbal. Barcelona, 1997.
CARVALHO, Maria João Vilhena de, Normas de Inventário. Artes Plásticas e Artes Decorativas. Escultura. IPM. Lisboa, 2004.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Gráfica de Coimbra, Lda, 1993.
CLERIN, Ph., La Sculpture. Toutes les techniques, Paris, 1988.
LÓPEZ, Maria José Gonzalez, Metodologia de Estudio y Criterios de Intervencíon en Escultura Policromada en el IAPH (II), Ph. Boletín del Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico. Núm. 12. 1995. Pag. 44-49.
PHILIPPOT, Paul, La Restauration des Sculptures Polychromes. Studies in Conservation - International Institute for Conservation of Historic and Artistic Works. Vol. 15, Nº 4, 1970.

[1] Catecismo da Igreja Católica - Gráfica de Coimbra, Lda, 1993. P: 266.

[2] BRANDI, Cesare - Teoria do Restauro. Edições Orion. Amadora, 2006, p. 39

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