Rodolfo Papa, Discursos sobre arte sacra,Cantagalli, Siena, 2012
ROMA, (ZENIT.org) Apresentamos a seguir a Introdução do S. Ex. Card. Antonio Cañizares Llovera, Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto Divino sobre a obra de Rodolfo Papa.
Esta é uma obra que esperávamos, porque dela necessitamos: a obra de Rodolfo Papa, que estuda com profundidade a arte sacra e a sua mais íntima essência e identidade. Trata-se da essência e da identidade que nascem da verdade da arte sacra, e também da verdade da arte enquanto tal, na qual verdade e beleza são inseparáveis; e onde fé e arte, fé e beleza se abraçam em uma perfeita reciprocidade, que é unidade inseparável entre elas, semelhante ao que acontece entre fé e razão.
Assim reconhecia o papa Bento XVI que, na sua esplêndida entrevista deixada aos jornalistas no avião, em novembro de 2010, durante a viagem à Espanha para uma visita a Santiago de Compostela e, sucessivamente, para a consagração da Basílica da Sagrada Família do arquiteto Antonio Gaudì em Barcelona, afirmou o que segue: “Vós sabeis que eu insisto muito sobre a relação entre fé e razão; que a fé, e a fé cristã, tem a sua identidade somente na abertura à razão, e que a razão se torna ela mesma se se transcende para a fé. Mas igualmente importante é a relação entre fé e arte; porque a verdade, objetivo, meta da razão, se exprime na beleza e se torna ela mesma na beleza, se prova como verdade. Portanto, onde há a verdade deve nascer a beleza, onde o ser humano se realiza de modo correto, bom, expressa-se na beleza.
A relação entre verdade e beleza é inseparável e por isso precisamos da beleza. Na Igreja, desde o início, também na grande modéstia e pobreza da época das perseguições, a arte, a pintura, o expressar-se da salvação de Deus nas imagens do mundo, o canto e depois também o edifício, tudo isto é constitutivo para a Igreja e permanece constitutivo para sempre.
Assim a Igreja foi mãe das artes por séculos e séculos: o grande tesouro da arte ocidental — seja música, arquitetura ou pintura — nasceu da fé no interior da Igreja. Hoje há uma certa 'divergência', mas isto prejudica tanto a arte, como a fé. A arte que perdesse a raiz da transcendência, não se orientaria mais para Deus, seria uma arte dividida em dois, perderia a raiz viva; e uma fé que tivesse a arte só no passado, não seria mais fé no presente; e hoje deve expressar-se de novo como verdade, que é sempre presente. Por isso o diálogo ou o encontro, diria o conjunto, entre arte e fé inscrito na mais profunda essência da fé; devemos fazer de tudo para que também hoje a fé se exprima numa arte autêntica, como Gaudí, na continuidade e na novidade, e que a arte não perca o contato com a fé” (Bento XVI, entrevista concedida a jornalistas, 6 de novembro de 2010).
Quando foi pensado o presente livro essas palavras ainda não haviam sido pronunciadas, todavia, o conjunto desta obra de Rodolfo Papa – homem de fé, artista e pensador agudo e penetrante, pesquisador apaixonado pela verdade e pela beleza – constitui um aprofundamento, uma explicação e um comentário fiel das palavras e do pensamento de Bento XVI, para o qual o binômio fé-arte, a beleza da arte sacra, a unidade fundamental entre arte e Liturgia, são temas muito importantes do seu pontificado.
Entende-se perfeitamente a amizade entre a Igreja e os artistas no decorrer dos tempos, também nos nossos dias. Compreende-se a afirmação reiterada dos últimos papas – desde Paulo VI a Bento XVI – sobre a necessidade desta amizade, que é unidade e absoluta reciprocidade, e o apelo de expressar na obra artística o binômio fé-arte, fé-beleza, inseparáveis do outro binômio fé-razão, fé-verdade, fé-bondade, como realiza tão esplendidamente o autor deste livro. Desta visão da arte em geral e da arte sacra em particular, compreende-se o caráter de perenidade da arte, a sua natureza não efêmera, o seu valor universal além da circunstância da época ou do gosto do momento, ou dos afãs consumistas, compreende-se a sua dimensão religiosa e a mesma implicação do artista e da totalidade de sua pessoa na obra de sua arte, sobretudo quando se trata de arte sacra ou de arte para a Liturgia, seja música, pintura, escultura ou arquitetura, que não podem isentar-se de exprimir a iniciativa de Deus, a ação divina que sempre precede a obra artística, na mesma liturgia assim como na realidade do criado.
Enquanto escrevo esta apresentação, penso em tantos e tantos homens da arte que são fieis reflexos e testemunhas da verdade desta relação entre fé e arte, que tão magnificamente expressa o autor deste livro, e aos mesmos artistas e obras de arte, às quais, no decorrer do livro, ele mesmo se refere. Penso, por exemplo, no genial pintor universal do “Século de Ouro” espanhol, El Greco, no aproximar-se da celebração do seu quarto centenário. Nem a pessoa, nem por consequência a obra de El Greco podem se separar da sua dimensão religiosa, da fé cristã. Nele tudo reflete a grandeza de um homem de espírito com um especial “toque divino”, capaz de perceber e plasmar, nos grandes traços ou na impressão das cores de sua pintura singular, a Suprema Beleza, abismo infinito de perfeição, inigualável e soberana. Em toda a sua obra, grande e única, reflete-se o mais profundo dessa alma, imagem do seu Criador que a plasmou com o delicado toque de seus "pincéis divinos". Em toda a obra de El Greco aparece sempre o espírito sublime que contemplou e penetrou o “Mistério”, foi conduzido à sua densidade e o expressou com toda elevação da arte que emerge do fundo do ser iluminado por esta experiência, que transcende o olhar superficial incapaz de elevar-se em direção aos cumes altos do espírito. El Greco mergulhou na profundidade do Evangelho, no Mistério da Encarnação – de Deus feito homem para os homens e por eles entregue à Cruz – na vitória sobre a morte, tão inimiga do homem, que com tanta beleza e drama soube expressar sua obra.
Assim, com uma fé cristã com profundas raízes, bem formada e capaz de dar razão de sua verdade, El Greco, em toda a sua obra pitórica, mostra as realidades fundamentais desta fé, ensina, fala dos mistérios mais profundos aos rudes e aos simples, catequiza, eleva, conduz à contemplação, à maravilha, à veneração, à oração e ao louvor; dá razão à fé e mostra a sinfonia e a harmonia de sua beleza e a sua irradiação e expressão no mais vivo e genuíno do humano. Fê-la na peculiar circunstância do seu momento histórico, porém, a sua arte continua a falar hoje, como ontem, com vivíssima atualidade, porque não é a circunstância ou o momento efêmero que súbito passa que contam; mas porque expressa realidades que não perecem e o faz com uma linguagem de "ponta de alma", como diriam os místicos; fala com os pinceis e as cores deste "profundo centro da alma", onde cada homem se conhece e se sente compreendido, de qualquer geração que seja.
Como homem de radical "cristandade" e inseparavelmente filho do seu tempo, El Greco reflete o homem, pelo qual manifesta uma viva e singular paixão. Quem não vê esta paixão no "Enterro de Duca de Orgaz", o no "Expolio", ou no "Apostolado" da Sacristia da Catedral de Toledo, ou São José da mesma Catedral. As mãos, os olhos, os rostos, os movimentos dos corpos de seus personagens, tudo, toda a sua obra é uma expressão de como vê o homem e o seu drama: o homem que sofre e que ama, que vive este drama da existência e o seu desejo de felicidade, amado por Deus, o homem por ele amado e elevado, o homem salvo e chamado a participar da Sua glória: é a verdade do homem assim como é diante de Deus. Bem se reflete na sua arte que “a glória de Deus é o homem vivente” (S. Irineu de Lyon). Toda a sua obra manifesta o homem, exprime como é penetrado na profundidade do humano, mas não como o veria o pagão ou um mero humanista; há uma diferença notável: aquela que permite a visão de fé e que o leva a olhar com um olhar peculiar, o olhar da verdade que é inseparável da beleza. Atrás dos rostos ou dos corpos, das mãos ou dos olhos, das cores e das pregas das roupas ou dos movimentos dos corpos, há a verdade que professa sua fé sobre o homem.
Esta fé, decididamente cristã e cristocêntrica, é, igualmente, profundamente antropológica, humana, é a chave fundamental para adentrar e mergulhar na riqueza e grandeza de El Greco, como na mais autêntica arte ocidental. As suas obras, como outras nascidas da fé cristã, são obras que não são desnudas – nem podem se desnudar – de sua aura, da aura da beleza. Ainda não se tornaram – nem queremos e não permitamos que se tornem – puros e simples objetos de prazer pelas suas qualidades estéticas formais, puros e simples objetos de erudição para os peritos, puros e simples objetos da curiosidade distraída dos visitantes nas mostras e museus. Lá onde se encontram o santo e o crente, a beleza é o fulgor da graça. Aqui, a beleza nos faz voltar em direção a um "outro", do qual não podemos dispor, e que, todavia, nos atrai, nos acalma e nos pacifica. Aqui, através da beleza, emana uma força que não esmaga nem submete, mas que sustenta. Aqui, se exala uma liberdade que do profundo emana incessantemente e que do centro do nosso ser nos faz livres: a liberdade jorra da verdade e da beleza. Aqui, sobretudo, nos é aberta a comunicação do dom divino e do seu amor que nele nos é comunicado; aqui se abre a esperança e aqui se pinta o futuro de uma humanidade nova e de uma humanidade com o futuro.
Concluindo, as minhas felicitações e o meu apreço a Rodolfo Papa, por esta obra que não só no introduz na identidade e na essência da arte e em particular da arte sacra, mas que constitui uma grande ajuda para que a inseparabilidade da Liturgia e beleza não seja distorcida de alguma forma, mas ao contrário, engrandecida, potencializada e reforçada. Não me resta outra coisa senão convidar a adentrar-se neste livro e enriquecer assim, o ânimo e o olhar com a sua leitura.
Antonio Cañizares Llovera
Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto Divino
(Tradução: Ir Patricia Souza, pmmi)
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