quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Por que o Papa não vende os tesouros dos Museus Vaticanos?

A arte como forma de caridade e as novidades da Capela Sistina. 

As palavras do diretor dos Museus Vaticanos



Mais de 7km de extensão, 5.459.000 visitantes em 2013. Entre 20.000 e 25.000 presenças por dia. São os números dos Museus Vaticanos, os mais visitados do mundo, com mais de 100.000 obras de arte

Para além do valor artístico, histórico e cultural dos Museus, em 26 de novembro de 2006, Bento XVI escreveu que os Museus representavam uma visão heterogênea da humanidade e como instituição têm uma grande responsabilidade na difusão da mensagem cristã. 

Para entrar no mérito destas palavras e aprofundar sobre o papel da arte na vida da Igreja e do homem, entrevistamos o professor Antonio Paolucci, diretor dos Museus Vaticanos desde 2007, especialista internacional em História da arte. No governo italiano ele foi Ministro para os Bens Culturais entre 1995 e 1996.


© Sabrina Fusco / Museus Vaticanos

Por que a arte é tão importante na história da Igreja e da humanidade?
É preciso conhecer um pouco de história da Igreja para entender o que aconteceu entre o II e o III século, ou seja, nos primeiros séculos da era que nós chamamos cristã. Naquela época aconteceu algo de extraordinário e importante: diferentemente de outras religiões como o islamismo e o judaísmo, o cristianismo escolheu a figuração. Parece uma brincadeira, mas foi uma escolha carregada de futuro porque não existiria a história da arte: não existiria “Guardiões da Noite” de Rembrandt, ou “Os Girassóis” de Van Gogh, ou "O Guernica” de Picasso, se a Igreja naquela época não tivesse escolhido a figuração.

Pensemos em quanto trabalho deve ter vivido Paulo de Tarso, que conhecemos como São Paulo, judeu de lei, como quando na Primeira Carta aos Colossenses escreveu aquela frase incrível: Cristo é a imagem de Deus vivo. Um judeu ou um muçulmano diria que é uma blasfêmia. Também a Igreja teve a coragem de seguir esta linha escolhendo representar a verdade da fé e os episódios do Evangelho com as figuras, utilizando os estilos da época: o naturalismo, o ilusionismo helenístico, a arte dos gregos e dos romanos. Utilizando até mesmo as iconografias das antigas culturas e religiões, onde nos sarcófagos representavam Daniel na cova dos leões com o aspecto de Hercules: nu e vencedor, assim como o representavam os escultores da época. Pensemos em Cristo, ao qual se deu a imagem de Febo (Apolo). Utilizavam os materiais linguísticos e iconográficos da velha cultura inserindo os significados cristãos: assim começou a história da arte que chamamos de cristã, a qual produziu todas as formas de arte sucessivas. Se a Igreja de Roma tivesse feito a escolha dos muçulmanos e dos judeus, ou seja, sem os ícones, não existiria a história da arte. 

E a relação entre cultura e espiritualidade?
Não existe contradição entre elas, a cultura é sempre espiritual porque envolve aquilo que não se vê e não se toca. A cultura, o pensamento, a filosofia envolvem o aspecto do homem que se relaciona com as coisas invisíveis e intocáveis: O que é o homem? Qual o seu destino? Tudo isso é espiritualidade. Ou seja, não existe competição entre a cultura e a espiritualidade. Aquilo que nós chamamos de espiritualidade não é outra coisa que uma modulação daquilo que chamamos cultura.

Como responder às pessoas que dizem que o Papa deveria vender os tesouros como estes dos Museus Vaticanos para doar o dinheiro aos pobres?
Se o Papa vendesse as obras dos Museus Vaticanos o resultado seria que os pobres estariam mais pobres do que hoje. Isso porque as pessoas que entram nos Museus Vaticanos recebem da Igreja a caridade da beleza, que é a maneira de caridade mais linda que existe. A Igreja recolheu essas obras para as pessoas através dos séculos. A caridade da beleza, este é o nosso mistério e o nosso trabalho. É um bem intangível, que não se consome e é para os homens e mulheres de hoje, e para aqueles que ainda não nasceram.

O senhor afirmou que a arte ajuda a tornar as pessoas cidadãs.
É a função civil da arte e dos museus: um italiano que vê Rafael, Michelangelo, Botticelli, chega a se orgulhar de ser italiano, por exemplo. Assim como um alemão quando vê Dürer, ou um espanhol com Velazquez. A arte é a identidade de um povo, como a língua que fala. O museu, como a escola, serve para transformar as plebes em cidadãos: serve para dar aos cidadãos o orgulho de pertencer, a consciência da própria história. Eis porque o museu e a arte antiga são um formidável instrumento de educação e de civilização.


© Sabrina Fusco / Aleteia

Qual é a função espiritual da arte?
A capacidade que antes de tudo a arte tem é de levar felicidade a quem a observa, ou seja, o privilégio da arte de trazer a felicidade: vendo Rafael ou Botticelli a pessoa se encanta e se alegra com aquela beleza, guarda-a na memória, no coração e pode até se emocionar. Esta é a primeira função da arte.

Depois, tudo aquilo que é a emoção diante da beleza da natureza, da arte, diante da consciência da vida, conhecimento das outras pessoas, tudo isso é espiritual. A arte é veículo destas coisas. Se você olha um quadro de Caravaggio, de Picasso, de Van Gogh, mesmo sendo de uma outra época, falam de homens e mulheres que ainda estão vivos, dão a nós sentimentos e ideias que são universais. A arte nos coloca em comunicação com a humanidade e este sentido é espiritual.

Como pode o homem de hoje, invadido pela cultura da imagem, ter dificuldade de se deixar tocar pela beleza da arte?
Vivemos na época mais iconográfica da história. Estamos imersos nas imagens, não somente a televisão, mas também as publicidades, as roupas e etc. Tudo é ícone. Tudo é imagem na civilização moderna. Talvez esse excesso de ícones, essa espécie de “tsunami” de imagens, assim como aquela das informações, paralise-nos de um certo modo, nos “intoxique”, nos sobrecarregue. A tarefa - e por isso temos cérebro - é saber escolher, selecionar imagens, assim como selecionamos informações que chegam até nós por todas as partes.

Falando de escolha, qual é a sua obra de arte preferida dos Museus Vaticanos?
Tem mais de uma, mas se eu tivesse que dizer uma, por razões pessoais e de estudo, citaria a Transfiguração, de Rafael: o quadro mais lindo do mundo, uma hipérbole. Um quadro cheio de futuro, que nos faz compreender infinitas coisas.


O Prof. Antonio Paolucci diante da "Transfiguração" de Rafael  
​Museus Vaticanos. Pinacoteca - Foto © Musei Vaticani

O senhor encontrou o Papa Francisco?
Sim, e disse a ele: “Santidade, venha ver os Museus Vaticanos”, e ele me respondeu: “Sabe diretor, agora tenho muitas coisas para fazer, mas verei”. 

A Capela Sistina acolhe 20.000 visitantes ao dia, chegando a 30.000. Do ponto de vista técnico, como é preservada?
No dia 30 de outubro apresentaremos com uma convenção no Vaticano o novo sistema de ventilação, controle de humidade e da temperatura, junto ao novo sistema de iluminação. Intitulamos esta convenção: “Nova respiração e nova luz na Capela Sistina”.

A razão dessa escolha?
Antes de tudo não queremos que existam problemas de danificação, e depois porque com um novo sistema de iluminação podemos oferecer aos visitantes a melhor visualização dos afrescos de Michelangelo e não só. Porque como sabem, na capela não tem apenas Michelangelo, mas também Botticelli, Perugino, entre outros.

O senhor disse que a Capela Sistina é a “Suma Teológica do cristianismo”.
Para mim a Capela Sistina é o Catecismo da Igreja Católica feito em figura, a síntese visível da Doutrina Cristã. Os Papas quiseram dar esta função para a Capela Sistina: ser um grande livro ilustrado que conta por imagens a verdade fundamental desde a criação do homem ao Apocalipse, do Antigo Testamento ao Novo, os Profetas, enfim, tudo.

Bento XVI falou da responsabilidade da arte ao transmitir a mensagem cristã.
Para mim é um Papa inesquecível, porque em 31 de outubro de 2012 - no aniversário de 31 de outubro de 1512 quando o Papa Giulio II inaugurou a Sistina que Michelangelo tinha terminado - com uma grande sensibilidade de intelectual, para além de um Pastor, quis lembrar aquele evento. Repetiu a mesma função litúrgica celebrada por Giulio II, com os cardeais, bispos e o Magnificat cantado na Capela Sistina, fazendo um lindo discurso como teólogo, mas também como historiador que é. 

[Tradução de Clarissa Oliveira. Colaboraram com este artigo Ary Waldir Ramos e Sabrina Fusco]

Aleteia

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