Gustavo Werneck -Estado de Minas - em.com.br
São Gonçalo do Rio
Abaixo – Sete meses e uma hora. Esse foi o período que a comunidade
católica desta cidade da Região Central de Minas, a 84 quilômetros de
Belo Horizonte, esperou para ver de novo, dessa vez restaurada, a imagem
do padroeiro. Pelo entusiasmo e emoção demonstrados na noite de sábado,
valeu a pena ficar tanto tempo longe da peça do século 18, atribuída ao
português Francisco Vieira Servas (1720-1811). À tarde, o titular da
Paróquia de São Gonçalo, padre Fernando dos Santos Andrade, preparou uma
surpresa para os participantes da celebração das 19h. Com um tecido
vermelho e dourado ele cobriu a escultura para que, somente ao fim do
ato religioso, às 20h em ponto, todos pudessem admirar o trabalho que
devolveu as cores e beleza originais à imagem de devoção. E foram muitos
os aplausos.
De cedro, com 1,20m e 60cm de largura, a imagem de
São Gonçalo teve restaurados o douramento, a policromia e a riqueza de
detalhes, como os desenhos dos sapatos e os “esgrafiados” da roupa,
fruto de uma técnica sofisticada que consistia na aplicação de uma tinta
sobre o folheado a ouro. Ao retirar o tecido que cobria o santo
padroeiro do município, adornar-lhe a cabeça com o resplendor de prata e
dar a bênção, o pároco destacou a importância de se preservar a arte
sacra. “A Igreja tem dois bens: o espiritual, que são os sacramentos e
tudo relacionado à salvação das pessoas, e o material, criado e pensado
para fazer o homem orar e elevar o coração a Deus. Por isso, devemos
preservar esse patrimônio”, afirmou.
Antes de seguir para o
ateliê do Grupo Oficina de Restauro, na capital, a escultura de madeira
estava sem cupins, embora apresentando camadas de repinturas
inadequadas, em preto e branco, feitas possivelmente no início do século
passado; perda de alguns pontos, que estavam descascando; e falta de
dedos numa das mãos. Segundo o restaurador Adriano Ramos, do grupo, o
trabalho demandou quatro meses e trouxe uma surpresa, pois, aos poucos,
foi revelando uma obra de qualidade atribuída a Servas, que teve um
ateliê em São Domingos do Prata. “Não inventamos nada, apenas
recuperamos o que já havia na imagem”, observou.
Com chapéu
preto, de couro, terno e gravata, o aposentado Raimundo Gregório de
Figueiredo, de 69 anos, esperou o início da cerimônia sentado calmamente
aos pés do cruzeiro, fincado desde o século 19 em frente à matriz,
construída em 1720 e viculada à Diocese de Itabira. “Nem os mais velhos
aqui da cidade conheceram São Gonçalo como está agora. Ficou uma beleza.
A fé remove montanhas e tudo isso me faz lembrar do milagroso padre
João José Marques Guimarães, falecido em 1984. Foi pároco por seis
décadas e deixou muita saudade”, afirmou. Gente de todas as gerações foi
à igreja conferir a peça, que volta para o altar. “Temos toda segurança
no templo. Nesse período, para que os paroquianos não ficassem sem o
santo, pusemos uma réplica no lugar. Essa vai sair nas procissões”,
contou padre Fernando.
Confiança
Há
mais de 20 anos zeladora da igreja e integrante da Irmandade do
Santíssimo Sacramento, Dorotéia de Carvalho, de 60, conseguiu várias
graças por intercessão do padroeiro. “Lembro-me da minha mãe dizendo na
hora dos apertos: ‘São Gonçalo, me ajude!’”. Ao lado do pároco na
preparação da cerimônia, ela destacou o valor da fé. “É o mesmo santo,
só que mais bonito.” Coordenadora da liturgia, a professora aposentada
Mercês Liberata Dias dos Santos, de 51, elogiou a coragem do padre e a
confiança dele na equipe de restauração. “É muita responsabilidade tirar
uma imagem do altar e mandar recuperá-la. Deu tudo certo”, disse.
A
cerimônia foi pontuada pelo repicar festivo dos sinos, canções do coral
Sagrado Coração de Jesus e ritmo da Banda de Música Santa Cecília.
Durante a bênção da imagem, os fiéis entoaram o hino do padroeiro. O
casal José Renato e Maria Petronila Torres veio de Ipatinga para a
festa. “Estou feliz, pois fui batizado e crismado nesta igreja. Estamos
casados há 23 anos e, quem sabe, faremos a missa de bodas de prata
aqui”, disse o marido. Na fila para ver a imagem bem de perto, Maria das
Graças Correia Miguel, de 63, ressaltou que o restauro se tornou um
sonho realizado. Para Regina dos Santos Costa, de 74, a pintura a óleo,
servia para esconder o ouro da roupa do santo, que traz uma Bíblia na
mão e um cajado na outra. A viola, que reforçaria a figura do santo como
protetor dos boêmios, está desaparecida.
Campanha
Terminada esta etapa, padre Fernando e a comunidade dão início à
recuperação do altar-mor, dos retábulos laterais, igualmente atribuídos a
Servas, do arco cruzeiro e da tarja, além do forro que traz a Trindade,
as virtudes teologais e os evangelistas. O primeiro passo foi dado na
noite de sábado, quando Adriano Ramos presenteou a paróquia com o
projeto de restauração dos elementos artísticos, serviço com valor
estimado em R$ 1,1 milhão. De acordo com as prospecções, há “ouro e
cores” por baixo das camadas de tinta a óleo branca que cobrem os
retábulos. “Vamos pedir o apoio das empresas. Temos agora a
oportunidade, mais uma vez, de escarafunchar a história e dar valor ao
que temos”, disse o religioso, com entusiasmo. A estudante Marcella
Moreira, de 12, passou suavemente as mãos sobre a peça barroca. “Já vi a
imagem várias vezes no altar, mas agora é diferente. Está mais bonita e
gostei de ver os sapatinhos”, disse a menina.
Santo dominicano
Vale
a pena seguir pela rodovia BR-381 só para ver a imagem de São Gonçalo,
que pertenceu à ordem dos dominicanos. Ele nasceu no início do século
13, na aldeia de Ariconha, distrito de Guimarães, em Portugal, era filho
de nobres e recebeu uma educação exemplar, norteada por um sacerdote.
Já adulto, tornou-se também sacerdote e viajou em peregrinações
religiosas a Roma, Itália, onde visitou os túmulos de São Pedro e São
Paulo. Na sequência, visitou os lugares santos em Jerusalém. Mais tarde,
fixou-se num lugarejo pouco habitado, hoje cidade de Amarante, e por
volta de 1250 construiu uma capelinha dedicada a Nossa Senhora da
Assunção. Logo depois, São Gonçalo se refugiou como eremita e passou a
viver em penitência e mortificações. Segundo a lenda, teria recebido uma
visita milagrosa da Virgem Maria, que o aconselhou a entrar para o
Mosteiro de São Domingos, em Guimarães. As festas de São Gonçalo se
destinam à resolução de problemas de casamento de mulheres velhas,
esterilidade e colheitas.
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