segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O paraíso voltou a ser dourado e emocionante em Florença

No painel de Jacob e Esaú são evidentes os elementos renascentistas (Corbis)


Florença, primeira metade do século XV. Espalhados pela cidade há dezenas e dezenas de artífices e aprendizes a trabalhar nos ateliers dos mestres que têm em mãos projectos para palácios e catedrais. Donatello, Brunelleschi, Verrocchio e Ghiberti estão lá, como verdadeiros revolucionários na arquitectura, na escultura e na pintura, num momento em que a República de Florença vive em agitação permanente, entre lutas internas e o desejo de mostrar a sua força perante os principados que a rodeiam e a própria Igreja. Há muito dinheiro para investir em arte e a ambição de a pôr ao serviço da política, do poder.
É neste contexto que Lorenzo Ghiberti cria as portas do Baptistério de São João, um dos edifícios mais singulares e mais antigos da cidade (1059-1128), na Piazza del Duomo, nome pelo qual Santa Maria del Fiore, a catedral de Florença, é conhecida. Obra-prima do Renascimento italiano, que, segundo o pintor e humanista Giorgio Vasari, Miguel Ângelo viria a comparar às Portas do Paraíso, o conjunto de bronze com cinco metros de altura e três de largura começou a ser restaurado há 34 anos, depois de séculos exposto à poluição, a cheias e actos de vandalismo.

Este processo complexo, entregue a um dos melhores institutos de conservação e restauro do mundo, o Opificio delle Pietre Dure, está terminado e as portas construídas entre 1425 e 1452 passarão a estar expostas, a partir de 8 de Setembro, no museu da catedral, numa caixa de vidro especial, com humidade e temperatura constantes. No lugar que ocupavam no século XV permanecerão as réplicas que ali foram instaladas em 1990, ano em que o trabalho dos técnicos exigiu que as originais fossem transportadas para o laboratório.

Para que as portas de Ghiberti recuperassem o seu dourado inicial e vissem os seus maiores problemas de conservação resolvidos foram precisos anos de estudo e debate entre especialistas. Quando os instrumentos que havia à disposição dos técnicos não atingiam os objectivos previstos, inventavam-se novos. Annamaria Giusti, que desde 1996 lidera a equipa do Opificio delle Pietre Dure que restaurou as portas, disse ao Art Newspaper que a intervenção nesta jóia da escultura renascentista exigiu um grande diálogo entre a comunidade científica, o que nem sempre é fácil.

Foram precisos 12 anos de planeamento e 22 de trabalhos para que se chegasse aqui. As portas, compostas por dez painéis representando cenas do Antigo Testamento, como a de Adão e Eva ou a de Caim e Abel, muitíssimo danificadas devido à poluição, estavam cobertas de fendas resultantes do desgaste do material e tinham sais encrustados que as escureciam, explicou Giusti.

Só para destacar os painéis da estrutura da porta, toda ela composta por molduras trabalhadas, com motivos vegetalistas e figuras esculpidas, entre elas uma cabeça representando o próprio Ghiberti, os especialistas precisaram de seis anos de debate para determinar qual seria o melhor método. Depois, "o tempo de extracção era altamente irregular: um painel podia demorar 20 dias a retirar, o outro seis meses", acrescentou a conservadora. "E se era difícil retirar um painel da porta, mais difícil ainda era voltar a pô-lo."



O projecto de restauro das Portas do Paraíso começou em 1978, 12 anos depois de as cheias de Florença terem arrancado cinco painéis da estrutura, obrigando o monsenhor Poli, o responsável pela Duomo, e os seus colaboradores a andarem pela lama para os resgatar.

Já no laboratório, um diagnóstico mais aprofundado permitiu aos técnicos concluir que as variações da humidade tinham feito com que os óxidos instáveis por baixo da superfície se tivessem dissolvido, recristalizando e criando bolhas e buracos minúsculos na camada dourada.

Pouco a pouco, os trabalhos avançaram. O material usado pelos técnicos parecia saído da mesa de instrumentos de um dentista, explicava a Smithsonian Magazine em 2007, ano em que três dos painéis, já restaurados, fizeram uma digressão por quatro museus norte-americanos: um bisturi para retirar as incrustações, uma broca para cortes de precisão e uma escova rotativa para polir. Em 2000, os restauradores começaram a usar um laser revolucionário, especialmente concebido para o projecto, que não aquecia a superfície.

"Antes de Ghiberti, ninguém em Itália era capaz de criar algo tão grande em bronze", disse Giusti. "Não desde o fim do império romano, pelo menos."

 
Com 560 anos, a obra de Ghiberti é uma referência na história da arte do Ocidente, "absolutamente revolucionária e fundadora", diz António Filipe Pimentel, historiador de arte e director do Museu Nacional de Arte Antiga. "É com ela que entramos no Renascimento na escultura. E que bela entrada, já que é de um virtuosismo técnico e de composição irrepetível", diz. "Ghiberti é um grande artista porque sabe pensar e sabe fazer. Só a sua perícia no trabalho do bronze torna possível o seu rasgo criativo." Para Pimentel, o escultor trabalha com dois tempos, com dois mundos: o da Idade Média e o do Renascimento. "Ele traz lições da escultura antiga no saber fazer, no tema baseado no ideal cristão que está ainda longe de uma cultura mais pagã, mais voltada para a beleza e para o prazer, própria do Renascimento. Mas ele reinventa a escultura. As portas do baptistério são de um Renascimento sem arcaísmos. São uma coisa nova."

As novidades reflectem-se, por exemplo, no tratamento dos edifícios, evidente no painel em que se conta a história de Jacob e Esaú: os mosaicos do chão mostram a perspectiva rigorosa, dando uma ideia de profundidade, os arcos e as pilastras são inspirados na arquitectura romana tal como a interpretava Brunelleschi, principal rival de Ghiberti, nas suas igrejas e catedrais (a ele se deve a cúpula de Santa Maria del Fiore). O jogo entre o alto e o baixo relevo, com algumas figuras quase a caírem dos painéis, cria uma ilusão permanente.

"Estas portas são tão importantes para a história da escultura como para a história da pintura", defende Pimentel. "Isto porque Ghiberti compõe com um grande sentido pictórico, plástico. A sua escultura beneficia da investigação que se estava a fazer na pintura."



Este conjunto de portas na entrada oriental do edifício, que Ghiberti executa depois de ter completado um primeiro com cenas do Novo Testamento (entre 1403 e 1424), composto por 28 relevos bem mais pequenos e feito para servir de par ao desenhado por Andrea Pisano em 1330, é ainda notável pelo "humanismo" das cenas representadas. "Cada relevo, cada almofada, funciona como uma pintura. É incrível a quantidade de episódios sobre a vida daqueles personagens que ele consegue pôr num espaço tão pequeno." Basta olhar para o painel de Adão e Eva, com cenas sobrepostas, explica. "É tudo contado com grande emoção, o que é muito moderno, e encadeado, como num filme. Esta intensidade torna a obra muito eficaz."

Expostas a partir de Setembro, as portas só deverão ocupar o seu lugar definitivo entre 2014 e 2015, quando estiver concluída a ampliação do museu da catedral.

Fonte: Publico

Um comentário:

  1. Parabéns, Rodolfo Khristianos pelo TEXTO que nos acrescenta mais um pouco da Cultura da Civilização Ocidental, que fala da sensibilidade do artista Ghiberti para com os TEMAS de Humanidade bem como das técnicas e métodos desenvolvidos na época para a concepção do Portão do Paraíso, e que nos enche os olhos e reforçam nossos "círculos virtuosos" para continuar acreditando na HUMANIDADE ...

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