terça-feira, 2 de maio de 2017

Cupins ameaçam pinturas raras

Por
DANILO SANS

Apesar de guardar tesouros artísticos e arquitetônicos importantes para a história do Brasil, a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Mogi das Cruzes, não tem recebido a atenção merecida, segundo avalia a doutora em História da Arte Danielle Manoel dos Santos Pereira, que recentemente desvendou, em sua tese de doutorado, um dos maiores mistérios envolvendo o santuário: a autoria e a data da pintura executada no forro do vestíbulo da sacristia.

Três forros da igreja receberam pinturas: a da sacristia, que Danielle descobriu ser de 1750, a da nave, de 1801 e a da capelamor, de 1814, formando um ciclo único da pintura no Estado de São Paulo. Toda essa riqueza, no entanto, pode, literalmente, ir ao chão, caso não sejam tomadas medidas urgentes de proteção. “Mogi corre um risco muito grande de perder essas pinturas”, afirma.

Para ela, o restauro, super atrasado, precisa ser encabeçado por quem tem mais capacidade de conseguir recursos: o poder público municipal. Mas precisa ser abraçado pela própria Ordem Carmelita, pela população e empresários da Cidade. No entanto, pouca ou quase nenhuma movimentação é vista nesse sentido, além da vontade expressa de funcionários do santuário de proteger o patrimônio. Danielle não é mogiana, mas escolheu a Igreja do Carmo como objeto de estudos e sonha, um dia, ver o patrimônio carmelita – que não é apenas um patrimônio da Cidade, mas brasileiro – ser tratado com o devido respeito. Confira abaixo a entrevista complexa concedida por ela a O Diário:



Pesquisa de Danielle Pereira vê semelhança de pinturas do Carmo com as encontradas em igrejas mineiras






Como foi seu primeiro contato com as obras sacras do Carmo?

Minha pesquisa de mestrado já versava sobre as pinturas de Mogi. O trabalho foi sobre a comparação entre as pinturas dos forros da Igreja do Carmo de Mogi – que não dialogam com as pinturas do restante do Estado de São Paulo – com aquelas existentes no meio norte de Minas Gerais, e que têm uma semelhança visual muito grande. Durante a pesquisa, no final de 2010, junto à Paróquia do Carmo, participei do edital Ponto de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura, para desenvolvimento de reserva técnica e exposições do acervo das igrejas do Carmo. [nota da redação: Danielle conta que tentou publicar o trabalho de mestrado com o apoio de Mogi das Cruzes, mas ressalta que não houve interesse por parte do Município – “ou melhor, do departamento de cultura mogiano”].

Mogi das Cruzes tem um acervo único no Estado. O que explica isso?

Na época do mestrado, havia essa dúvida. Eu sabia os nomes dos pintores de Diamantina e de Mogi das Cruzes, porém não havia informações sobre, por exemplo, se os pintores de Mogi eram mineiros. O que consegui demonstrar foi que há, de fato, uma relação visual entre as pinturas de Manoel do Sacramento [no forro da Nave, datado de 1801] e de Antônio dos Santos [no forro da capela-mor, de 1814] com as pinturas mineiras.

Qual a importância dessas obras?

A gente tem, em Mogi, um ciclo da pintura único no Estado de São Paulo. Quando comparada essas pinturas a qualquer outra, temos um valor histórico, cultural e simbólico muito diferenciado, porque formam um ciclo à parte da pintura no Estado. São obras pictóricas únicas. No seu doutorado, você descobriu o autor da pintura localizada no forro da sacristia, mas novos questionamentos foram abertos. No doutorado, demonstro que existem dois ciclos distintos de pintura. Os pintores faziam sempre uma opção de gosto, de estética, que poderia ser determinado pelo encomendante ou pelo que estava em voga na época. Isso não teremos como saber porque não há o contrato dessas pinturas de Mogi – e eu tenho certeza porque vasculhei toda a documentação. Sem o contrato, não dá para saber o que na pintura é fruto da inventividade do artista ou o que foi determinado pela própria igreja.

Na sua opinião, o acervo em Mogi das Cruzes é tratado de forma adequada?

Eu acredito que ele deveria ser melhor aproveitado. Não é tratado de forma adequada. Não é dado o devido valor histórico, cultural e artístico, tanto que estão em estado lastimável. As obras estão instáveis. A qualquer momento podemos, literalmente, perder o forro pelo ataque maciço de cupim que já vem ocorrendo, pelo apodrecimento das pranchas. O forro da nave tem buracos gigantescos. No forro da capela-mor, a camada pictórica está pulverulenta, apodrecendo, você passa a mão e ele se desfaz. Mogi corre um risco muito grande de perder essas pinturas.

A quem caberia a conservação dessas peças?

Isso pode ser feito pela prefeitura, pela própria Ordem Carmelita, pela população, de um modo geral, por empresários. Deveria haver uma parceria entre todos os órgãos. Está nas mãos do poder público em parcerias com a iniciativa privada correr atrás e restaurar. Em Itu, por exemplo, uma equipe de ituanos muito preocupados com o patrimônio da Igreja Matriz conseguiu levantar o restauro em parceria com a Prefeitura. Uma empresa também entrou com bastante capital para realizar a obras. Foi uma união de várias forças.

É possível estimar um valor de um restauro desse porte?

Isso só um restaurador pode dizer, mas um trabalho de restauro das pinturas, incluindo a pintura da igreja da Ordem Primeira, pode custar uns R$ 4 milhões. Você e a historiadora Carla Manuela Vieira iniciaram um trabalho de exposição e elaboração de reserva técnica no museu da Ordem, em 2010.

Esse projeto já foi finalizado?

Assim como a paróquia do Carmo, nós ainda estamos aguardando o repasse de verba. Houve mudança de prefeito de 2010 pra cá e estamos aguardando a liberação da última parcela da verba dos pontos de cultura. Até agora, só recebemos duas parcelas, a terceira não saiu. Tivemos duas exposições, mas a terceira, que encerraria o ponto de cultura, não aconteceu por falta de verba, que seria utilizada, inclusive, para finalizar a reserva técnica que desenvolvemos no museu – e os motivos não foram claramente informados.

Registro mais antigo do que o de Ouro Preto

As Igrejas das Ordens Primeira e Terceira do Carmo são exemplares singulares da arte barroca dentro do Estado de São Paulo. Elas guardam tesouros artísticos e arquitetônicos incomensuráveis, que precisam ser preservados, conforme alerta o arquiteto Luiz Miguel Franco Baida, um dos defensores do patrimônio cultural e artístico de Mogi das Cruzes.

Apesar disso, completa Baida, falta interesse, tanto do poder público quanto da própria sociedade. O arquiteto chegou a organizar um movimento para angariar fundos para salvar os forros e as respectivas pinturas, mas, sem patrocínio, a ideia acabou sendo engavetada.

Segundo o arquiteto, a restauração realizada entre a década de 1970 e concluída em 1984 no imóvel abrangeu apenas a parte estrutural do santuário, ou seja, não incluiu o patrimônio artístico carmelita. “Naquela época, os forros das igrejas já estavam com cupim e infiltração”, revela.

O arquiteto lembra que Mogi das Cruzes possui um grande tesouro em seu território. “A igreja da Ordem Primeira é de 1633, quase da época da fundação da Cidade.

Para se ter uma ideia, a cidade de Ouro Preto é de 1693. Nossa igreja é 60 mais velha que Ouro Preto. Nossa igreja é um testemunho vivo da história de Mogi e também do Brasil”, completa.

Baida conta que o barroco paulista sempre foi desmerecido, por não ser tão rico quanto o mineiro – financiado, na época, pelo ciclo do ouro. No entanto, por suas características únicas, as pinturas existentes nos forros das Igreja da Ordem Terceira ajudam a elevar o padrão do estilo no Estado. (D.S.)

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