quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Para autor dos mosaicos gigantes do Santuário de Aparecida, a maior tentação para a igreja é a religião

 Para autor dos mosaicos gigantes do Santuário de Aparecida, a maior tentação para a igreja é a religião

Por Luan Galani e Fernanda Massarotto, especial para HAUS

Gazeta do Povo

Curitiba e Milão

No dia que um jovem promissor de uma família simples dos alpes eslovenos alcançou seu sonho foi também o início de uma pequena crise que o levou à transformação. O jovem Marko Ivan Rupnik, da minúscula Zadlog, na Eslovênia, havia se feito notar, ganhara prêmios, as pessoas gostavam e estavam consumindo sua arte. Mas, depois de uma reflexão, após ter embalado suas novas obras que em breve seriam destaque em uma renomada galeria em Nova York, Marko desembalou tudo, enfileirou as telas sobre a mesa do seu ateliê e cobriu todas com tinta preta. Como em uma espécie de luto. O que ele estava fazendo com aquele dom? Para que servia sua arte? "Minha arte leva a Deus ou somente a mim?", perguntou à época.

A partir daquele momento, ofereceu suas tintas definitivamente a Deus. Hoje com 68 anos Rupnik é considerado o maior nome da arte sacra contemporânea. Esse jesuíta, teólogo e artista responsável pelo Centro Aletti, de Roma, assina mais de 200 obras em mosaico nos mais importantes santuários marianos de Fátima, em Portugal, e Lourdes, na França, na Igreja de São Pio de Pietrelcina, em San Giovanni Rotondo, na Itália, no Santuário Nacional de Washington, nos EUA, e, no Brasil, na Catedral de Santa Maria Mãe de Deus, em Castanhal, no Pará, e no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo.

Marko Ivan Rupnik, 68 anos, é considerado o maior artista sacro contemporâneo| Centro Aletti

No último dia 30 de novembro, Rupnik esteve em Curitiba para uma palestra gratuita na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) sobre "Educar pela Beleza" (assista aqui), e para receber o título de "Doutor Honoris Causa" pela mesma instituição, quando ele parou por quarenta minutos para conversar com a reportagem sobre arte, arquitetura, modernidade e espiritualidade.


Qual a sua primeira lembrança de arte?

Ver meu pai desenhando e pintando cervos nas paredes de casa [nos alpes da Eslovênia].


E quando e como você tomou consciência de que a arte ia se tornar parte importante da sua vida?

Eu sempre gostei de desenhar. Não queria escrever. Tanto que na escola os professores tinham um problema, porque eu não queria escrever, eu desenhava. Mas a arte se tornou um caminho para mim no noviciado dos jesuítas, quando tanto o mestre de noviços quanto o provincial entenderam imediatamente que talvez fosse um caminho em que eu pudesse servir a igreja. Lembro-me quando os superiores me mandaram a Roma para estudar na Academia de Belas Artes. O provincial me levou ao aeroporto em Trieste e me disse: “Eu não sei porque você deve estudar arte, mas eu sei que você deve ir. E um dia o Senhor tornará isso útil para a Igreja”. Foi bem assim.


O que é a arte sacra?

Penso que a expressão mais precisa seria arte litúrgica, o que entende-se na prática como arte sacra. De modo muito simples é possível dizer que a arte suscita o assombro, desperta sentimentos, a memória, ela nos maravilha. A arte litúrgica ou sacra faz você perceber-se dentro de um olhar, que não está sozinho, que está com alguém, e faz com que faça um sinal da cruz, se incline, toque levemente com a mão sobre a obra. Suscita uma relação. Chama a uma abertura, a uma saída de si mesmo. E a não se deter naquilo que se sente, mas acolher. Em um segundo nível seria possível dizer que a arte litúrgica é a tradução da palavra de Deus em imagens e cores, e por isso faz com que a gente veja de modo imediato o nexo entre a palavra e a vida. Ela não pode se deter sobre a própria obra de arte. Da mesma forma que a palavra de Deus não se detém na palavra de Deus. Ela é dirigida a alguém. E a obra de arte litúrgica faz você ver que a sua história faz parte de um todo. Porque a arte litúrgica não apenas traduz a palavra, mas permite que você veja a palavra em seu conjunto orgânico, porque o olhar da liturgia é o olhar do todo. A liturgia não permite que se isolem os detalhes, mas ela mantém o conjunto. Isso é muito importante para a vida. Hoje somos muito fortes na análise. Mas o problema é uma visão de conjunto. Esse é o lugar em que a arte litúrgica tem a sua grande missão, porque não apenas diz, mas mostra.



A arte defendida e praticada pelo Centro Aletti tem sua própria identidade, e é particularmente diferente daquela que decora muitas igrejas antigas renascentistas e barrocas. Poderia explicar qual mal que essa arte barroca ajudou a causar na sociedade atual? E por que vocês fizeram a escolha por uma arte mais simbólica?

O problema do renascimento e do barroco não é um problema dessas correntes artísticas. O problema é quando essas correntes ocupam o espaço litúrgico. Por exemplo, no renascimento a perfeição ideal é compreendida pelo homem através do seu intelecto, através da sua intuição intelectual, do conhecimento cultural. Eu vejo como melhorar e aperfeiçoar uma realidade que não é perfeita. Essa perfeição adquire uma perfeição da forma: equilíbrio das cores, das formas, figurações etc. Isso a humanidade fez, os gregos já fizeram isso, mas isso está em contraste pleno com a liturgia e com a visão da obra de Cristo. Por isso já o Concílio de Trullo, no século 7º, diz que uma linguagem assim não é adequada para o espaço da liturgia. Por que não? Porque na liturgia a ação principal é do Espírito Santo, e nós acolhemos, não somos nós os protagonistas, nós suplicamos o dom do Espírito Santo. E a perfeição é uma convergência da nossa oração, da nossa acolhida, da nossa abertura com a ação que Deus realiza. A perfeição do pão e do vinho da Eucaristia não se realiza graças a quem fez o pão e o vinho. Mas graças à descida do Espírito Santo. Não se trata da absolutização da ação de Deus. Aquilo é fruto da terra e do trabalho do homem, é uma convergência. É justamente esse o problema. Em vez de considerar a sinergia com o Espírito Santo, somos formados de modo a pensar que tudo depende de mim, que preciso me empenhar, imaginar meu futuro, projetar, programar, realizar. Se me realizo, existe o risco do orgulho, depois quando começam as doenças e acidentes, acontece um problema. E se não me realizo, me deprimo. Já o barroco é todo um imaginário, tudo projetado para cima, tudo no teto, no forro. Mas Cristo se fez homem, veio nos tomar, assumir a humanidade, não somos nós a nos imaginar nessa subida. Nós não vamos ao céu, somos levados ao céu. Na liturgia somos corpo de Cristo, e vivemos de sua vida, do pão e do vinho. E é o sacerdócio de Cristo que nos eleva, por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Deus Pai, na unidade do Espírito Santo. Não sou eu que vou ao Pai. Sou conduzido pelo sacerdócio de Cristo. Essa dimensão é problemática depois do barroco e renascimento. Mas a arte pode exprimir a vida biológica, a vida psíquica e, portanto, a vida intelectual, do imaginário, do mito etc. Mas para os cristãos a arte exprime a vida segundo o Espírito Santo.


Como está sendo fazer os mosaicos de Aparecida?

O convite foi da Igreja do Brasil, da conferência episcopal, dos responsáveis pelo Santuário Nacional de Aparecida, os redentoristas. Apresentei um projeto bastante complexo, o qual estudei por muitos meses, e houve um encontro com uma comissão. Tenho muita experiência com comissões, mas essa no Brasil está entre as mais honestas, competentes, sérias e dialógicas. Falava-se, conversava-se. As conversas eram aderentes e profundas. Não havia nenhuma questão ideológica, nenhum preconceito. Apenas a competência nos argumentos em questão. Depois chegamos ao Brasil, com temor e tremor, do mesmo modo que começamos a trabalhar em Roma. Começamos a trabalhar um ano antes em Roma fazendo os rostos, desenhando as figuras. Trabalhamos sempre dizendo aos artistas que a Igreja nos chama, e estamos respondendo. Não estamos propondo algo, estamos respondendo. É uma grandíssima responsabilidade. Porque quem nos chama pode ser muito iludido. Pode ficar muito decepcionado por não estarmos no nível exigido. Por isso o temor e o tremor. E preciso dizer que os redentoristas, principalmente o padre Luiz Cláudio [Alves de Macedo] e o bispo, Dom Orlando [Brandes], nos sustentaram, nos fizeram sentir que estamos trabalhando a partir da Igreja e para a Igreja. O trabalho foi duríssimo. Porque se trabalha em uma área externa, o tempo muda a cada 20 minutos, de 35 graus a 18 graus no mesmo dia, do sol e vento que seca a cola à chuva e a um dilúvio terrível. E a gente na área externa. Para mim o maior milagre, em três meses que passamos aqui no ano passado, foi que nenhum artista se lamentou, ninguém protestou, ninguém se desencontrou com o outro, sem ciúme e sem inveja, com amizade, um mútuo entendimento na fé. Realmente a vida no Espírito, por isso acho que a arte mostra isso, que se está fazendo o edifício eclesial, que é imagem e corpo de Cristo. Não podemos trabalhar se não sabemos que somos realmente parte do corpo de Cristo.


De todas as igrejas que você já ajudou a pintar, montar mural, preparar, qual a mais especial para você, e por quê?

Sou muito sincero. Os artistas e outros amigos que me conhecem bem brincam comigo porque cada vez que terminamos um trabalho, digo que essa é realmente uma graça de Deus, é a melhor que a gente fez, e por isso penso que é Aparecida.


O Brasil atualmente mergulha em um movimento de fé com práticas e ideias que remontam a antes do Concílio de Trento. Como o Papa Francisco diz, um indietrismo [essa é uma palavra inventada pelo papa Francisco a partir de indietro, que significa “para trás” em italiano, e poderia ser traduzida como “paratrasismo”]. Por que isso é tão sedutor para as pessoas? E como a arte pode ajudar a sairmos do buraco?

É uma pergunta muito complexa. Só direi uma coisinha. A maior tentação para o Evangelho, para a vida no Espírito Santo, para a Igreja como corpo de Cristo, para a humanidade reunida na humanidade de Cristo, é a religião. A religião são as estruturas que gerenciam a relação entre Deus e a humanidade. Se alguém realiza algo, então é religiosamente perfeito e Deus vai recompensá-lo. Já a fé, como diz São Paulo, faz com que Cristo habite em nós. A fé é a acolhida de Cristo, acolhida de um modo de existir, em que participo graças a uma Pessoa divina, que é o Espírito Santo. O maior problema dos últimos séculos é a ausência do Espírito Santo em nossa teologia. Há diversos textos e estudos sobre essa ausência. Porque é daí que a gente escorrega para a religião. A fé é um dom da vida, que me transforma, que me preenche de um modo de existir, que é o modo do Filho. Por isso sou filho no Filho. A religião se apega àquilo que eu tenho que fazer, tem efeitos psicorreligiosos, dolorismo, pietismo etc. Penso que é muito importante algo que o então cardeal Ratzinger dizia, um homem que chegou a muitas sínteses importantes, e uma delas é: no século 13, a arte nossa, latina, registra uma mudança perigosa. Ela se deteve na crucificação, isolando-a, e aí não se consegue mais vê-la com os olhos de ressuscitados, a partir do eschaton, do cumprimento de tudo em Cristo. E Ratzinger diz que a visão escatológica, a visão com olhos de ressuscitados, não é uma questão intelectual, mas uma questão de participação, de participar da vida do Ressuscitado, de viver o batismo, de viver a crisma, de viver a Eucaristia, de viver verdadeiramente como ressuscitados. E ao contrário, não ter o olhar de ressuscitados, o olhar que enxerga do cumprimento para cá, é justamente o sinal de que o que perdemos é a vida. Aí ficam os argumentos religiosos. Por exemplo, nos desenhos de crucificações depois do século 13, é difícil ver que se trata do Filho de Deus, é apenas um homem que sofre. Não se consegue ver que é o Filho de Deus. Então se arrisca que sejamos os dois discípulos de Emaús, que se detiveram na morte, na crucificação, e não se deram conta que o Ressuscitado caminha com eles.


O Oriente é importante para você, que interagiu e interage com diversos teólogos orientais. Para pessoas que não conhecem tão a fundo, qual o maior ensinamento deles, o mais importante, que podemos levar adiante?

É muito complexo, mas muito humildemente ousaria dizer que os autores orientais seriam muito úteis para a Igreja latino-americana para abrir visões da grande tradição do primeiro milênio e da contemporaneidade, porque, como você me disse antes, é fácil nesses países que a gente só consiga beber da teologia do século 16 em diante [a partir da colonização]. Porque foi nesse tempo que vocês foram evangelizados, com uma visão teológica e eclesial que não respirava mais o primeiro milênio. O Concílio Vaticano II pede que retomemos essa respiração, pede que nos sintamos parte da Igreja universal, que superemos individualismos eclesiais, que respiremos a comunhão eclesial. Não será fácil, porque a mentalidade está muito formada e é míope. Por exemplo, se você entra em uma casa religiosa, seja franciscana, salesiana, jesuíta etc., todos os santos expostos são os deles. São eles mesmos. Não se respira a comunhão universal. E a doutrina da Igreja é muito clara: a comunhão dos santos. Mas nesse caso não a temos. São só os nossos. Existe então o risco de viver a Igreja dessa forma. E isso enfraquece a Igreja terrivelmente, a expõe a tentações culturais, políticas, decisões dos governos, porque é só isso que eu vejo, não acesso a sabedoria eclesial, porque os santos do primeiro milênio eu não os escuto, não os conheço. Interessante que se me fecho aqui nessa sala, posso sentir falta de água, mas aí tento sobreviver tomando leite e tomo só leite. Uma hora vou ficar mal. Como não entendo que tem outra sala com água e que posso trocar o leite pela água, e o outro receber um pouco de leite? Assim é a Igreja. É a troca de dons, como dizia São João Paulo II.


Alguns dias após a realização desta entrevista, notícias alcançaram o Brasil sobre possíveis abusos sexuais e psicológicos que o jesuíta teria praticado 30 anos atrás contra nove freiras de sua terra natal. De acordo com a Agência de Notícias Italiana (Ansa), não se sabe o teor da suspeita. O Vaticano passou um ano investigando o caso e decidiu arquivá-lo.


A ordem jesuíta, por meio de um comunicado escrito, disse que editou medidas cautelares contra Rupnik logo no início das investigações e que agora decidiu manter algumas limitações, como não ter permissão para ouvir confissões ou conduzir direções espirituais.



Procurado pela reportagem em Roma, só que desta vez por telefone, Rupnik e o Centro Aletti afirmaram que não querem, neste momento, fazer nenhuma declaração sobre o ocorrido.

Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/tentacao-arquitetura-nao-convivencia-igreja-religiao-arte-marko-rupnik/ 

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