sábado, 16 de março de 2019

Entre brasões e igrejas, obras de Paulo Lachenmayer estão espalhadas por Salvador

Texto de Bruna Castelo Branco

Mesmo vivendo no Brasil há 68 anos, o irmão Paulo Lachenmayer, nascido na Alemanha, esqueceu como se falava português nos últimos dias de vida. Já velhinho, caiu e quebrou o fêmur no Mosteiro de São Bento, onde morava desde os 19 anos. Não conseguia andar e mal saía da cela –  é assim que se chamam os quartos dos mosteiros. Um grupo de noviços se revezava para cuidar dele e de outros monges alemães que ainda viviam por ali. Um desses cuidadores é o padre Maurício. Na noite do dia 7 de abril de 1990, ele atestou que irmão Paulo estava morto.

“Era umas 21h. Eu tinha saído para deixar um padre lá na Barroquinha, que é ali perto. Quando voltei, o monge que estava com ele estava aperreado, dizendo que estava preocupado com irmão Paulo. Entrei na cela e constatei a morte dele. Pedi ao sineiro, irmão Pascoal, que tocasse o sino para que todos soubessem”, lembra. Assim como todos que moram ali, irmão Paulo foi sepultado no mosteiro, bem longe de onde nasceu. Uma casa para sempre.

Quando chegou à cidade, irmão Paulo seguiu à risca o lema da Ordem Beneditina: ora et labora (ora e labora, em português). É uma das regras mais conhecidas de São Bento, que dizia que “a ociosidade é inimiga da alma; por isso, em certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual, e em outras horas com a leitura espiritual” (Cap. 48 da Regra de São Bento). Irmão Paulo era arquiteto, escultor, ilustrador, designer gráfico e heraldista. Foi ele quem criou o brasão da Universidade Federal da Bahia, o da Universidade Católica do Salvador e o do Museu de Arte Sacra, por exemplo. Também é autor do brasão da cidade de Campina Grande (PB), onde padre Maurício nasceu.

E mais: o arquiteto e pesquisador Paulo Veiga, autor do livro Irmão Paulo Lachenmayer: um artista alemão no mosteiro beneditino da Bahia no Brasil, que vai ser lançado pela Edufba no final deste mês, acrescenta outro talento ao religioso: “Posso afirmar, categoricamente, que ele foi o primeiro artista moderno da Bahia, não tem dúvidas sobre isso. Mário Cravo conhecia ele, se consultava, bebeu dessa fonte”.

O livro veio de uma dissertação de mestrado, que veio de uma capa de livro, a Gramática Nova do Francês, ligada a um nome que ouviu muito na infância. O autor da gramática é o pai dele, o professor e escritor Cláudio Veiga, e o artista da capa é o irmão Paulo Lachenmayer. “Também convivia com as imagens do ex-libris e o busto de São Francisco Xavier, santo de devoção do meu pai e padroeiro da Cidade do Salvador, todos feitos por Irmão Paulo”. Conviveu com as obras, mas não com o biografado em pessoa.
Nascido na Alemanha, o monge atuou como arquiteto, escultor e ilustrador
Nascido na Alemanha, o monge atuou como arquiteto, escultor e ilustrador
Quando percebeu a beleza e a precisão do trabalho do religioso, entrou num caminho sem volta. Foi para a Alemanha, conheceu a família de irmão Paulo e passou por cinco cidades: Munique, Ravensburgo, Langenargen, Beuron e Weingarten.

“A convivência com o mundo e com a vida de irmão Paulo fez nascer um vínculo espiritual com ele. Passou a ser, para mim, um grande amigo. Recebi a missão de divulgar a arte e o nome dele”, diz Veiga. Quer que toda essa informação alcance a Alemanha, onde o sobrenome Lachenmayer ainda é desconhecido. Refez os caminhos do monge.

Arte
Nos tempos do Império, a cultura monástica do Brasil começou a morrer. Já não havia noviços e os monges que restaram estavam envelhecendo. Com a proclamação da República, os mosteiros sobreviventes pediram ajuda a congregações de outros países, que funcionaram mais como  importadoras de aprendizes de padre. A Alemanha, onde sobravam religiosos, deu socorro.

Os pais de irmão Paulo, que nasceu no ano de 1903 na cidadezinha de Langenargen, deram a ele o nome de Ernst. Ernst, antes de ser Paulo, ficou órfão de pai e mãe. Sem casa, um irmão foi embora para Munique, as irmãs entraram num convento beneditino e Ernst foi adotado pelo mestre Theodor Schnell, que o ensinou o ofício da escultura sacra. Aos 19 anos, já era um artista formado. “Ele foi educado em modelos medievais. Mas sua influência artística é marcada fortemente pelo expressionismo alemão e pelo funcionalismo. Pelo modernismo alemão”, explica Veiga.
Lachenmayer desenhou o brasão de universidades, como o da Federal da Bahia
Lachenmayer desenhou o brasão de universidades, como o da Federal da Bahia
E dá para ver. Na casa de Veiga há um acervo imenso das obras de irmão Paulo, dadas para Cláudio Veiga, de quem era muito amigo. “Ele usava muito uma aparência xilográfica, desenhava pessoas com expressões fortes, rostos deformados… É a influência expressionista”. Na Alemanha, não sobrou muita coisa. Numa mudança, os sobrinhos que herdaram as obras, escritos e cartas se desfizeram de grande parte do que ficou por lá, algumas coisas da época da adolescência. “Eles gostaram que vai ter o livro, por isso vai ser bilíngue, português e inglês”.

Na igreja, aquele modernismo todo, que misturava o expressionista ao sacro, não era tão bem visto assim. Para o pesquisador, isso pode ter empacado um pouco a evolução da carreira do monge nas artes modernas. “O abade da época achou as imagens tão esquisitas que não gostou. Ele teve que se enquadrar”.
Ernst veio ao Brasil com outros alemães, aqueles que vieram em socorro aos mosteiros. “A Alemanha pós-guerra passava por mais dificuldades do que o Brasil”, diz Veiga. Logo decidiu que seria um irmão leigo, ou seja, não faria a profissão solene nem ganharia o título de dom. O Labora pesou mais. “Ele nunca quis ser padre. Trabalhava o tempo todo com alegria. Não perdia tempo, nunca o vi à toa”, conta o abade dom Emanuel, do Mosteiro de São Bento, amigo de irmão Paulo.

Na época, aqueles que decidiam não seguir a profissão solene acabavam responsáveis pelos trabalhos braçais. Labora. Cuidar da carpintaria, das galinhas, dos jardins e da cervejaria, trazida pelos alemães. “Eles faziam para consumo próprio. Era uma fórmula milenar dos mosteiros da Alemanha”, conta Denia Gomes, coordenadora do setor de cultura do mosteiro. Quando eles foram envelhecendo, a cervejaria fechou e a fórmula sumiu. “Mas vamos tentar retomar isso”, diz ela.

Padre Antônio, professor aposentado da Universidade Católica, lembra que os irmãos leigos eram, geralmente, pessoas de pouco estudo. Irmão Paulo destoava um tanto. “Ele pertencia a essa categoria, mas era um intelectual. Ele era um artista, trabalhava sozinho. Tinha uma vida de oração e de trabalho”, explica ele, que viveu no Mosteiro de São Bento entre 1959 e 1961.

No mosteiro, na cidade
Andando por aí, com atenção, dá para achar algumas das contribuições do monge em Salvador. Fez o projeto de restauro de monumentos como a Igreja da Graça e a Igreja de Montserrat. A Capela do Carmelo, no bairro do Candeal, é toda obra dele. Como que em agradecimento ao santo que o acolheu, fez também os projetos das portas e do teto da Igreja de São Bento, anexa ao mosteiro. O croqui ainda está lá, guardadinho no arquivo. “Ele fez o desenho das portas laterais, que não existiam na época, era um vão. E o telhado antes era de madeira”, diz dom Anselmo, responsável pelo arquivo do mosteiro.
Desenhou também o Brasão de Armas da  Congregação Beneditina. No mosteiro, deixou tantos rascunhos de brasões que nem dá para contar. “Ele foi o maior heraldista eclesiástico do Brasil. Era um horror a heráldica antes dele, de 1900 a 1930”, opina abade dom  Emanuel. Fora da Bahia, deu consultoria na construção da Catedral do Rio de Janeiro e da Catedral de Brasília, com o arquiteto Oscar Niemeyer. Passou três anos no Mosteiro de São Bento de São Paulo, onde também laborou.

O trabalho árduo com os brasões rendeu e ainda tem rendido estudos. Tanto que chegou ao I Seminário Internacional de Heráldica, organizado pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Lá, a filóloga Alicia Lose, professora de paleografia da Universidade Federal da Bahia, falou sobre a revolução que ele fez na heráldica no Brasil, uma arte ainda muito europeia. “Evidentemente, falei do nosso heraldista beneditino que, com a sua arte e traço firme, ultrapassou os muros do mosteiro”. Agora, ultrapassa as fronteiras do Brasil.

Quem conviveu com irmão Paulo ou conhece a história dele concorda que ele tinha uma característica marcante: gostava de fazer mil coisas ao mesmo tempo. Em bom baianês, era agoniado. “Se pediam para ele fazer uma porta, ele queria fazer a porta e mais duas janelas. E fazia mesmo”, diz Veiga.
Para o pesquisador Paulo Veiga, Lachenmayer é o primeiro artista moderno da Bahia
Para o pesquisador Paulo Veiga, Lachenmayer é o primeiro artista moderno da Bahia
Desde que se foi, muita coisa mudou no Mosteiro de São Bento, a casa que escolheu para viver e morrer. Viajou algumas vezes para a Alemanha, mas sempre voltou. Hoje, nessa correria que a gente conhece bem, os monges usam celular e WhatsApp, meios de comunicação mais rápido do que os sinos centenários do mosteiro, agora usados mais quando a tecnologia resolve  falhar.

Irmão Paulo Lachenmayer tinha outro talento: o de calígrafo. “Ele era tão organizadinho que fez um mapa  numerando as lápides do mosteiro”, mostra Denia. Deixou o desenho de todas as lápides, com a mesma caligrafia de quem fez as inscrições há séculos, como se ele mesmo as tivesse feito. Passando por ali comparando o real ao desenho, encontramos o túmulo dele. A inscrição diz: “Sepultura do nosso Ir. Paulo Lachenmayer, grande arquiteto e heraldista, falecido aos 7 de abril de 1990, aos 87 anos de idade e 64 de profissão”.

Fonte: A tarde/UOL

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