por Bruno Filipe Pires
«Na semana passada, ao passar na estrada reparei que a porta foi arrombada. A corrente e o cadeado continuam lá, mas as dobradiças foram arrancadas», denunciou ao «barlavento» uma testemunha, que já trabalhou no ramo da conservação e restauro, e que agora gere uma pequena horta biológica nas redondezas.
As primeiras denúncias que fez foram desvalorizadas. Foi-lhe dito que nada de valioso existe naquela capela, com um passado de saque e pilhagem. «Os azulejos são do melhor que o Algarve recebeu nos século XVII/XVIII. Não há assim tantos imóveis destes na região. Em termos de pintura, o que ali está não é algo feito por um artista local. Foi feito por alguém que já tinha escola. A qualidade, digamos que é a melhor que foi possível de pôr em prática numa região pobre como era o Algarve naquela altura», garantiu.
«Aos olhos do cidadão comum, é muito fácil pensar que é algo sem valor. Mas no mercado negro de arte religiosa, o que ainda resta, as tábuas pintadas, a talha barroca e os azulejos, pode chegar aos 50 mil euros», considerou.
Colecionadores sem escrúpulos alimentam um mercado paralelo para a arte sacra. «As peças são roubadas, entram num circuito fechado e desaparecem. Não chegam aos mercados de velharias, não chegam aos antiquários e perde-se-lhes o rasto. Isto aconteceu por todo o país e continua a acontecer. Tudo leva a crer que se nada for feito, será o rumo que este património vai ter», lamentou.
«O Algarve não é uma região assim tão rica em termos de património, que nos possamos dar ao luxo de considerar que isto, só porque existe algum bicho na madeira, não merece a nossa atenção. As obras estão em condições de serem restauradas. Os danos naquelas não são graves – sujidade nas pinturas, algum caruncho, mas a essência destes bens está lá toda. As talhas podem ser facilmente recuperadas», garantiu.
«Quem somos nós para jogar fora? Isto é uma herança cultural que tivemos o privilégio de receber».
Propriedade privada versus interesse público
Depois de contactar a União de Juntas de Freguesia do Algoz e Tunes, este cidadão preocupado telefonou para a Direção Regional de Cultura, em Faro. Perante a aflição, conseguiu expor o caso à responsável, Alexandra Gonçalves, que confirmou ao «barlavento» estar a acompanhar a situação. No mesmo dia, a diretora regional de Cultura mandou uma das suas arquitetas ao terreno. Apesar de a capela estar classificada pela Direção-Geral do Património Cultural, como imóvel de interesse público desde novembro de 1993, é propriedade privada e tem uma história complicada e já antiga.
Maria Luísa Conduto Luís, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Silves, explicou que o atual executivo teve conhecimento deste caso através de um requerimento apresentado em Assembleia Municipal, no Algoz, a 6 de outubro de 2014, sobre a degradação da capela. «Os moradores manifestaram a sua preocupação. Fizemos uma exposição ao proprietário, pois a Caderneta Predial está em nome de Manuel Santos Brás», de Beja.
«O particular foi notificado para fazer obras. Mas num embrulhar que a situação tem, verificou-se que a capela foi doada à paróquia há uns anos», pela falecida sogra do dono do terreno, nos anos 1960/70. O processo ficou apalavrado, mas não completamente finalizado em termos legais. «Pelo que percebi, a paróquia nunca fez o registo nas finanças», explicou a vereadora.
Entretanto, os serviços da autarquia de Silves fizeram um levantamento do que seria necessário para não deixar o imóvel ruir e abrandar a degradação, para responder à Assembleia Municipal, em julho de 2015.
«Sendo propriedade privada, a Câmara não pode intervir diretamente» na capela, mas, no final do ano passado, a vereadora sentou à mesa do salão nobre, o padre Condeço, responsável da paróquia do Algoz, o proprietário do terreno, o presidente da União de Juntas de Freguesia de Algoz e Tunes, e um advogado da Diocese para resolver o imbróglio legal.
«Ficou acordado legalizar a situação. O padre Condeço referiu que a paróquia não tem dinheiro para recuperar o imóvel e que iria falar com o bispo. Até agora não tive qualquer retorno», acrescentou a vereadora ao «barlavento».
«Há uns tempos, os nossos técnicos estiveram lá a ver se existe alguma degradação na parte de azulejos, mas não estavam danificados e [foi o que] comunicamos à Direção Regional de Cultura».
A vereadora disse ainda que «o proprietário estava na disposição de entregar a capela ao município, mas não o fez devido a tudo o que está por detrás. Esta é uma situação que se vai arrastando».
«Se seria interessante que a capela fosse visitável? Sim, isso era. Temos tentado naquilo que nos é possível, mas tem de haver vontade da paróquia. Não podemos intervir num espaço privado, sem autorização e sem qualquer parceria», concluiu.
Diferentes leituras
Sérgio Antão, presidente da União de Juntas de Freguesia de Algoz e Tunes, recorda-se que a capela chegou a ter culto. Era o autarca miúdo, há talvez mais de 40 anos. Depois entrou em lenta agonia. «Quando deram por ela estava vandalizada e o que sobrou de santos e imagens foi levado para a igreja matriz», disse.
Também o autarca confirma a história da doação informal. «Foi doado de boca. A igreja sempre teve a chave apesar de não ter a propriedade. Nunca legalizaram. Se a igreja tinha a posse devia manter» o bom estado de conservação.
Da reunião na autarquia de Silves, no final do ano passado, Sérgio Antão ficou com uma leitura diferente, pois viu «o modelo 129» que regista a propriedade do imóvel por parte da paróquia nas finanças, embora o mesmo, «não esteja no registo predial».
Sobre o plano de recuperação traçado pela Câmara de Silves «é uma coisa suave. É só a pintura por fora, recuperar o telhado para não haver infiltrações, o reboco exterior, segurar o edifício, pinturas. Já era bom. O problema agora é quem é que tem dinheiro para arranjar isso?»
Mas as críticas não ficam por aqui. «A Direção Regional de Cultura devia preocupar-se há mais tempo. Que eu saiba nunca tiveram interesse em recuperar aquilo. Já lá esteve o IPAR há uns anos», referiu.
Algoz não está no roteiro turístico, mas há quem venha perguntar pela capela. «Saiu um artigo na imprensa alemã e apareciam aí uns estrangeiros com uma revista na mão a perguntar se a podiam visitar», no início do seu mandato. Ainda assim, Sérgio Antão acredita que é possível um destino diferente para a capela. «Quando foi para recuperar a igreja matriz, há cerca de quatro anos, a Junta ofereceu a tinta e o município a mão-de-obra. Com boa vontade de todos, pode ser recuperada».
Alexandra Gonçalves reconhece que «é possível que haja» mais património cultural nestas circunstâncias. «É mais fácil acompanharmos o que património do Estado, que está na dependência das direções regionais, do que aquilo que está na mão dos privados». «O nível de vandalismo que demonstra a capela já é muito acentuado. Os proprietários têm responsabilidade sobre os seus imóveis, certo?», questiona.
O «barlavento» contactou a Diocese do Algarve que remeteu explicações para o padre Condeço. No entanto, não forneceu o contacto a tempo do fecho desta edição.
Por último, uma palavra à fonte que nos denunciou esta situação. Confrontado com o facto de haver um imbróglio legal dificulta o restauro, sublinho «é verdade. Mas existe sempre a diplomacia. Um acordo pode ser alcançado entre as entidades responsáveis pela conservação do património e o proprietário. Este, não parece ter grande preocupação», mas «é um pequeno tesouro». «Se me deixarem, vou lá eu próprio colocar dobradiças e fechar a porta»…
Nota Histórico-Artística
Segundo a Direção-Geral do Património Cultural, a Ermida de Nossa Senhora do Pilar está classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 45/93, DR, I Série-B, n.º 280, de 30-11-1993.
Localizada num monte dominante, a Sul da povoação de Algoz, a ermida de Nossa Senhora do Pilar é a principal referência religiosa da zona. A construção do actual edifício deu-se na época barroca, mais concretamente na viragem para o século XVIII, mas é provável que sob este edifício estejam estruturas de templos anteriores, dada a natureza elevada do local – propícia a cultos de romaria – e o facto de nas imediações, no sítio da Amoreira, se terem identificado numerosos vestígios arqueológicos, indiscriminados e, por agora, sem datação rigorosa (DOMINGUES, 2ªed., 2002, p.118).
A ermida é bastante modesta e compõe-se de uma curta nave, uma capela-mor rectangular e um pequeno espaço de sacristia. Ao contrário, a fachada principal pretende demonstrar uma pretensa monumentalidade, que o edifício claramente não possui. Um portal principal, sobrepujado por uma leve cornija, é ladeado por duas janelas, dando, assim, uma perspectiva de espaço interior bem mais largo que a realidade. Para além disso, esta fachada é ladeada por duas torres sineiras, num claro sinal de simetria cenográfica – reforçada pela extrema elevação do imóvel, no alto de um outeiro – que contrasta com a singeleza das restantes partes. As paredes laterais, por exemplo, são desprovidas de elementos decorativos e o telhado repousa directamente sobre as paredes, sem qualquer cornijamento de ligação.
No interior, existem alguns pormenores artisticamente interessantes, embora sem a qualidade das grandes obras barrocas do distrito. Ao nível da cobertura, enquanto a nave apresenta uma abóbada simples, de berço, a capela-mor ostenta uma abóbada hexagonal, fruto de pesquisas arquitectónicas mais eruditas, que pretenderam dotar o templo de maior monumentalidade. O retábulo-mor é outros dos elementos a destacar, na medida em que é um dos melhores exemplos algarvios onde se testemunha a transição do estilo nacional para o joanino, com as carcterísticas colunas torsas a delimitar (e tendencialmente a dominar) toda a composição.
Pelas características que aqui apontamos, podemos considerar este pequeno templo da vila de Algoz – dedicado ao orago da freguesia – como um testemunho interessante da religiosidade rural barroca, que aqui fez erguer uma capela modesta, semelhante a tantas outras espalhadas pela província – à entrada das povoações e em local estrategicamente dominante -, mas onde o decorativismo e a monumentalidade típicas do tempo barroco se fazem tenuamente sentir.
Fonte: Barlavento
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