sábado, 4 de novembro de 2023

São Carlos Borromeu



 São Carlos Borromeu (1538-1584), cardeal da Santa Igreja Romana e arcebispo de Milão, de 1565 a 1583, foi definido, no decreto de canonização, como «um homem que, enquanto o mundo lhe sorri com as maiores agruras, vive crucificado ao mundo, vive do espírito, rejeitando as coisas terrenas, procurando continuamente as celestes, imitando na terra, nos pensamentos e nas obras, a vida dos Anjos» (Paulo V, Bula «Unigenitus», de 1 de Novembro de 1610). A devoção aos anjos acompanhou a vida de São Carlos, que o conde de Olivares, Enrique de Guzmán y Ribera, embaixador de Filipe II em Roma, definiu como «mais anjo que homem» (Giovanni Pietro Giussano, Vita di San Carlo Borromeo, Tipografia da Câmara Apostólica, Roma 1610, p. 441).

           

Muitos artistas, como Teodoro Vallonio, em Palermo, e Sebastien Bourdon, em Fabriano, retractam nas suas pinturas Carlos Borromeu enquanto contempla um anjo que embainha a espada ensanguentada a indicar o fim da terrível peste de 1576. Tudo começou em Agosto daquele ano. Milão estava em festa para acolher João de Áustria, de passagem para a Flandres, de que tinha sido nomeado governador. As autoridades da cidade estavam empenhadíssimas para prestarem ao príncipe espanhol as maiores honras, mas Carlos, seis anos arcebispo da diocese, seguia com preocupação as notícias vindas de Trento, de Verona e de Mântua, onde a peste começava a reivindicar vítimas.                      

Os primeiros casos eclodiram em Milão a 11 de Agosto, precisamente quando lá entrava D. João de Áustria. O vencedor de Lepanto, seguido pelo governador Antonio de Guzmán y Zuñiga, deixou a cidade, enquanto Carlos, que se encontrava em Lodi para o funeral do bispo, regressou imediatamente. A confusão e o medo reinavam em Milão e o arcebispo dedicou-se inteiramente à assistência aos doentes, convocando orações públicas e privadas. D. Prosper Guéranger resume assim a sua inesgotável caridade: «Na ausência de autoridades locais, organizou o serviço sanitário, fundou ou renovou hospitais, procurou dinheiro e suprimentos, decretou medidas preventivas. Acima de tudo, providenciou o alívio espiritual, a assistência aos enfermos, o sepultamento dos mortos, a administração dos Sacramentos aos habitantes confinados por prevenção nas suas casas. Sem temer o contágio, deu a própria vida, visitando hospitais, orientando as procissões de penitência, fazendo-se tudo para todos como um pai e como um verdadeiro pastor» (L’anno liturgico – II. Tempo Pasquale e dopo la Pentecoste, Paoline, Alba 1959, pp. 1245-1248).     

São Carlos estava convencido de que a epidemia era «um flagelo mandado do céu» como castigo dos pecados do povo e que, contra isso, era necessário recorrer aos meios espirituais: oração e penitência. Censurou as autoridades civis por terem posto a sua confiança nos meios humanos e não nos meios divinos. «Não tinham proibido todas as reuniões piedosas e todas as procissões durante o tempo do Jubileu? Para ele, estava convencido, eram essas as causas do castigo» (Chanoine Charles Sylvain, Histoire de Saint Charles Borromée, Desclée de Brouwer, Lille 1884, vol. II, p. 135).       

Os magistrados que governavam a cidade continuavam a opor-se às cerimónias públicas, com medo de que o ajuntamento de pessoas pudesse dilatar o contágio, mas Carlos, «que era conduzido pelo Espírito divino» – diz outro biógrafo –, convenceu-os dando vários exemplos, entre os quais o de São Gregório Magno que tinha parado a peste que devastava Roma em 590 (Giussano, op. cit. p. 266). Enquanto a peste se espalhava, o arcebispo ordenou que três procissões gerais se realizassem em Milão, nos dias 3, 5 e 6 de Outubro, «para aplacar a ira de Deus». No primeiro dia, o santo, embora não se estivesse em tempo de Quaresma, impôs as cinzas sobre as cabeças dos milhares de pessoas reunidas, exortando à penitência. Terminada a cerimónia, a procissão dirigiu-se para a Basílica de Santo Ambrósio.     

Ele próprio se colocou à frente do povo, vestido com a capa magna, com um capuz e os pés descalços, a corda de penitente em volta do pescoço e uma grande cruz na mão. Na igreja, pregou sobre o primeiro lamento do profeta Jeremias: Quomodo sedet sola civitas plena populo[1], afirmando que os pecados do povo tinham provocado a justa indignação de Deus. A segunda procissão presidida pelo cardeal dirigiu-se para a Basílica de São Lourenço Maior.         

No seu sermão, aplicou à cidade de Milão o sonho de Nabucodonosor, de que fala Daniel, «mostrando que a vingança de Deus tinha vindo sobre ela» (Giussano, Vita di San Carlo Borromeo, p. 267). No terceiro dia, a procissão dirigiu-se da Catedral para a Basílica de Santa Maria de São Celso. São Carlos levava nas suas mãos a relíquia do Santo Prego de Nosso Senhor, doada pelo imperador Teodósio a Santo Ambrósio, no século V, e terminou a cerimónia com um sermão intitulado: Peccatum peccavit Jerusalem (Jr 1, 8). A peste não mostrava sinais de diminuição e Milão parecia despovoada porque um terço dos cidadãos tinha perdido a vida e o resto estava em quarentena ou não ousava sair de casa. O arcebispo ordenou que se erguessem, nas principais praças e ruas da cidade, cerca de vinte colunas de pedra encimadas por uma cruz para permitir que os habitantes de cada bairro participassem nas missas e nas orações públicas desde as janelas de casa.     

Um dos protectores de Milão era São Sebastião, o mártir a quem os romanos tinham recorrido durante a peste do ano 672. São Carlos sugeriu aos magistrados de Milão que reconstruíssem o santuário a ele dedicado, que caía em ruínas, e que celebrassem, durante dez anos, uma festa solene em sua homenagem. Finalmente, em Julho de 1577 a peste parou e, em Setembro, foi posta a primeira pedra do templo de São Sebastão, onde, a 20 de Janeiro de cada ano, ainda se celebra uma Missa para recordar o fim do flagelo.  

A peste de Milão de 1576 foi o que o saque dos Landsknechts tinha sido para Roma cinquenta anos antes: um castigo, mas também uma ocasião de purificação e de conversão. Carlo Borromeu recolheu as suas meditações num Memorial, no qual escreveu, entre outras coisas: «Cidade de Milão, a tua grandeza subia até aos céus, as tuas riquezas estendiam-se até aos confins do universo mundo (…) A peste, que é a mão de Deus, veio do céu e, de seguida, foi reduzida a tua soberba» (Memoriale al suo diletto popolo della città e diocesi di Milano, Michele Tini, Roma 1579, pp. 28-29). O santo estava convencido de que tudo se devia à grande misericórdia de Deus: «Ele feriu e curou; Ele flagelou e curou; Ele colocou a mão na vara do castigo e ofereceu o bastão do apoio» (Memoriale, p. 81). 

São Carlos Borromeu morreu a 3 de Novembro de 1584 e está sepultado na Catedral de Milão. O seu coração foi solenemente transladado para Roma, para a Basílica dos Santos Ambrósio e Carlos, onde ainda é venerado. Inúmeras igrejas são-lhe dedicadas, entre as quais a majestosa Karlskirche, em Viena, construída, no século XVIII, como acto votivo do imperador Carlos VI, que confiou a cidade à protecção do santo durante a peste de 1713.       

Durante os seus dezoito anos de governo da diocese de Milão, o arcebispo Borromeu dedicou-se com igual vigor a combater a heresia, que considerava a peste do espírito. Segundo São Carlos, «de nenhuma outra falha é Deus mais gravemente ofendido, por ninguém provocado a maior indignação do que pelo vício das heresias, e que, por sua vez, nada pode arruinar tanto as províncias e os reinos como pode aquela horrível peste» (Conc. Prov. V, Pars I). São Pio X, citando esta sua frase, definiu-o «modelo do rebanho e dos pastores nos tempos modernos, incansável defensor e conselheiro da verdadeira reforma católica contra esses modernistas recentes, cuja intenção não era a reintegração, mas a deformação e destruição da fé e dos costumes» (Encíclica Edita saepe, de 26 de Maio de 1910). 

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