quinta-feira, 8 de junho de 2023

Procissão do Corpo de Deus em Lisboa

 

Procissão do Corpo de Deus em Lisboa

Exposição “Corpus Christi: A procissão do Corpo de Deus, por Diamantino Tojal
Lisboa, antigo Convento da Graça, 16 jun. 2017 – 1 jul. 2018

A Solenidade Litúrgica do Corpo e Sangue de Cristo começou a ser celebrada em meados do século XIII, ao mesmo tempo, crescia a devoção ao Santíssimo Sacramento, através de práticas que incluíam a adoração da hóstia fora da missa e as procissões do Santíssimo Sacramento. A solenidade teve início em 1246, na cidade de Liège, na atual Bélgica, por iniciativa de freira Juliana de Mont Cornillon, cumprindo o pedido feito durante as visões místicas de Cristo para que se fizesse uma festa litúrgica anual em honra da Sagrada Eucaristia. Na altura, o cónego Pantaleão de Troyes, futuro Papa Urbano IV era arcediago do Cabido Diocesano de Liège.

Missa de Bolsena (detalhe)
Rafael Sanzio, 1512
Vaticano, Musei Vaticani, Stanza di Eliodoro

A solenidade proclamava a presença, real e substancial, de Cristo nas espécies eucarísticas, em resposta às heresias que a punham em dúvida. É também esse o sentido do milagre de Bolsena, ocorrido em 1264: o padre Pedro de Praga, na viagem de regresso à Boémia depois de uma audiência com o Papa em Ovieto, onde se encontrara também com São Tomás de Aquino, parou em Bolsena e, aí, celebrou uma missa, mas, no momento da consagração, ao proferir o texto canónico da transubstanciação, a hóstia surgiu-lhe como carne verdadeira coberta de sangue.

O Papa Urbano IV confirmou a autenticidade do milagre e, através da bula “Transiturus de hoc mundo“, de 8 de setembro, estendeu a festa solene “De Sacramento Corporis et Sanguinis Jesu Christi” a toda a Igreja latina, dotando-a de missa e ofício próprios e fixando-a na quinta-feira depois do domingo da Santíssima Trindade, na oitava de Pentecostes (60° dia após a Páscoa). Tomás de Aquino foi encarregado pelo Papa para compor o ofício, onde está incluída a sequentia Lauda Sion Salvatorem1, uma poesia dogmática e doutrinal acerca do mistério da transubstanciação. Depois de ter sido recomendada pelo Papa Clemente V durante o Concílio de Vienne (1311-1312), em França, o Papa João XXII publicou nas Clementinae2, em 1317, o dever de se levar a Eucaristia em procissão solene pelas vias públicas.

Solenne processione Vaticana del Corpus Domini. Diretta da uno de’ Cerimonieri di Sua Santità Gregorio XVI
Salvatore Busuttil, 1839.

A festa, conforme documentação de 1266 inscrita no Livro das Kalendas3  terá chegado a Portugal logo após a sua instituição (Costa, 1989, p. 219). O bispo de Coimbra, D. Aymeric d’Ebrard foi um dos grandes impulsionadores destas celebrações na sua diocese, antes de ser formalmente instituída por João XXII, mas a festa rapidamente se difundiu por todo o reino.

A procissão religiosa transformou-se também numa festa popular de grande aparato, incluindo autos e entremeses (Miguel, 1967). “A procissão do Corpus Christi, que se tornou a maior festividade nacional, devia ter começado bem cedo a incluir manifestações populares que destoavam da reverência devida ao Santíssimo Sacramento.” (Costa, 1989, p. 222) A intromissão de encenações de cariz mais ou menos profano no desfile religioso estão documentadas nos vários regimentos da procissão. Alexandre Herculano, no romance O monge de Cister ou a época de D. João I, faz uma descrição que, embora ficcionada, se baseia no regimento da procissão de Lisboa:

De todos os outros mestéres, cujos membros, em maior ou menor numero, ajudavam a tecer aquella enfiada de scenas ridiculas ou brutescas, distinguiam-se, pela singularidade das invenções que ostentavam, primeiramente os pedreiros e carpinteiros pelo seu engenho, ou machina de guerra, servida por dous feios demonios, e os armeiros pelo seu sagitario, symbolo do soldado peão, e no meio destas duas corporações os tanoeiros por uma torre grandemente historiada, e semelhante á dos correeiros e cortadores. Os moedeiros, corretores, tabelliães e mercadores, como mestéres mais nobres, fechavam aquele extenso sequito. Danças d’espadas, danças mouriscas, danças de péllas ou mulheres sustentadas sobre os ombros de outras, bailando e volteando conjunctamente; tudo, emfim, quanto se possa imaginar de caricatura, de burlesco, de doudejante servia de moldura a este quadro singular, em cujo topo figuravam alguns magistrados municipaes, e sobre o qual flutuavam dezenas de pendões, bandeiras e guiões variegados. Como contraste a estas visualidades heteroclitas, a esta espécie de sonho de pesadello, seguiam-se as communidades monasticas, mancha escura no dorso daquella imensa cobra, que se estirava pelas ruas de Lisboa: frades negros, frades brancos e pretos, frades crises, frases pardos, frades de todas as côres tristes; agostinhos, bentos, bernardos, dominicos, franciscanos, beguinos. Depois, um sem numero de cavalleiros de Christo, do Hospital, d’Aviz, de Sanctiago, precedidos dos respectivos mestres e commendadores e seguidas dos freires leigos e serventes d’armas. Depois, os magistrados da côrte, os oficiais da corôa e o próprio monarcha rodeavam a hostia triumphante nas mãos do bispo de Lisboa, e sustentavam as varas de riquissimo pallio. (Herculano, 1847, pp. 83-85)

A procissão tornou-se um cortejo performativo, em que se incluíam carros alegóricos, figuras alegóricas ou pitorescas, gigantones e cabeçudos, a serpe e o dragão, danças, pelas e momices, a par de cenas de autos sacramentais4.

A introdução da figura de São Jorge no cortejo, constituindo uma particularidade do caso português, é esclarecida no Novo regimento para o governo da mesa da bandeira de S. Jorge, fundada nas cartas, alvarás e lembranças do antiqo regimento que se queimou pelo terremoto de 1755 (cit. in Procissão do Corpo de Deus, 1860, pp. 109-110). Segundo este texto, a figura de São Jorge, com armadura de ferro e montado a cavalo, surgiu pela primeira vez no cortejo em 1387, por iniciativa do rei D. João I que teria invocado o santo guerreiro na batalha da Aljubarrota, prometendo reedificar o castelo de Lisboa, sob sua invocação. Além disso, o rei, ao criar a Casa dos Vinte e Quatro, instituiu a bandeira de S. Jorge, composta pelos ofícios que trabalhavam com ferro e fogo, a qual tinha a seu cargo a figura do santo e respetivo aparato na procissão do Corpo de Deus. A presença dos monstros era simbolicamente associada ao caos e à desordem que confirmava o poder redentor da entidade divina e da sua vitória sobre o mal. No entanto, a introdução de algumas componentes profanas constituía motivo de escândalo e determinaram a elaboração de Constituições diocesanas e Disposições régias com o propósito de evitar alguns abusos e, nomeadamente, os jogos, as danças e algumas figuras vivas não diretamente relacionadas com a festa. Sobretudo em função das determinações tridentinas acerca do culto e da veneração devidos ao Santíssimo Sacramento [De cultu et veneratione huic sanctissimo Sacramento exhibenda] (Concílio de Trento, sessão 13, capítulo 5, cânones 5-6), que determinavam que se celebrasse “todos os anos com singular veneração, e solemnidade em dia festivo particular este sublime, e venerável Sacramento” e que fosse levado “em procissões reverente, e honorificamente pelos caminhos” (Igreja Católica, Concílio de Trento, 1781, p. 255), as Constituições passaram a legislar a procissão, de forma mais pragmática e detalhada. No entanto, a própria regularidade da publicação destas medidas aponta para a continuidade das práticas abusivas.

Nas Constituições do Arcebispado de Lisboa, publicadas por D. Rodrigo da Cunha em 1640, determinava-se que se fizesse “a dita procissão com toda a pompa, & solemnidade possível” (Lisboa, Arquidiocese, 1656, p. 59). Por isso, ficavam obrigados a participar, sob pena de excomunhão, “todos os Clerigos seculares de qualquer Dignidade, & condição”, que residissem numa légua ao redor da cidade, sendo que “todos hiraõ descarapuçados com sobrepelizes lauadas, coroas, & barbas feitas” (id. ibid., p, 60). Também estavam obrigados “os Religiosos de quaisquer Religioens […] tendo mosteyros, ou Collegios na Cidade de Lisboa […], hindo em corpo de Comunidade com Cruz diãte, e hirá cada hum no lugar que lhe competir per sua antiguidade, ou de que estiuer de posse” (id. Ibid.). No mesmo texto, era definida a disposição dos participantes, sublinhando a obrigação de cumprir o cerimonial de acordo com as determinações tridentinas:

Sendo juntos todos, se porám em ordem na nossa Sé, ou na Igreja donde ouuerem de sahir, nos lugares que lhes competirem, segundo suas precedências, & antiguidades, conforme ao Ceremonial, & Ritual. Indo primeiro as danças, bandeiras, irmandades, & Confrarias das pessoas seculares, & logo os mininos orfaõs, & depois o Seminario, & logo as Religioens, ás quaes se seguiràm os Clerigos, & Parochos, & no vltimo lugar o nosso Cabido, sendo as procissoens nesta Cidade de Lisboa. (Id. ibid, p. 216)

Genericamente, a procissão devia celebrar-se em todas as catedrais e nas matrizes das cidades e vilas mais importantes e incorporar as representações das paróquias, confrarias e associações de piedade e, sob pena de excomunhão, os clérigos, beneficiados, dignidades eclesiásticas e ordens religiosas de cada lugar. Por outro lado, as autoridades civis, nomeadamente, as Câmaras Municipais, associaram-se à festa e a presença das corporações das artes e ofícios tornou-se obrigatória, ostentando as respetivas bandeiras, contribuindo para o maior brilho da festa. Também as Câmaras publicaram os seus próprios Regimentos, ou regulamentos, da procissão, os quais, determinavam os usos e os modos de trajar, as obrigações de cada corporação e a forma como deviam integrar o cortejo, as bandeiras e os pendões a levar, as coreografias e as posições de cada um dos participantes, incluindo as precedências do clero. Assim, o cortejo religioso passou a formalizar-se, também, como um cortejo cívico e corporativo, isto é, um “desfile da visão corporativa da sociedade” (Gouveia, 2001, p. 68). Na procissão de 1538, participaram 42 corporações de ofícios (Procissão do Corpo de Deus, 1860, p. 110).

Em 1719, sob o pretexto de que, ao longo dos tempos, se perdera a antiga pompa, D. João V quis restaurar o culto do Santíssimo Sacramento e ordenou que “fosse restituída a Procissaõ à sua primitiva ordem, e disciplina Ecllesiastica” (Machado 1759, p. 3)5. Na procissão, participaram 110 confrarias e 2500 irmãos do Santíssimo.

“Começou pois esta tão luzida, como assombrosa Procissão, ou Triunfo do Sacramemto, pelas bandeiras dos Officios mecanicos” (Machado 1759, p. 167).
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

O cortejo abria com as bandeiras dos ofícios mecânicos integrados na Casa dos Vinte e Quatro: “grandes paineis suspensos por cordões de seda, e ouro, e varas compridas com remates, e pontas de ouro, de que pendem muitas, e grandes borlas do mesmo metal” (id. ibid., p. 167).

Cada corporação fazia-se, ainda, acompanhar por grande variedade de carros e apetrechos: os almoinheiros, ou hortelões, com um carro (almoinha) figurando uma horta; os correeiros com os castelos, isto é, um trabalho em talha que servia de remate à respetiva vara; os sapateiros com um dragão; os alfaiates com uma torre e serpente; os carpinteiros e calafates com uma nau e galé; os tabeliães com tochas de prata (segundo informações acerca do préstito de 1538, em Procissão do Corpo de Deus, 1860, p. 110).

“Immediato aos trombeiteiros se via hum Cavalleiro vestido, e calçado de ferro com viseira, e colete, montado em hum cavallo acobertado” (Machado 1759, p. 168).
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

Seguia-se o aparato da representação de São Jorge, precedida pelos “tambores a pé, e trombeteiros a cavallo […], estes com o toque dos clarins, e das caixas faziaõ hum ruido alegre, e hum estrondo festivo” (id. ibid., p. 168), surgia o Rei de Armas, ou alferes de São Jorge, com armadura e montado a cavalo, conduzindo quarenta e seis cavalos da Casa Real ricamente ajaezados. “A Imagem vestia armas brancas prateadas, gorra de veludo na cabeça, guarnecida de preciosissimos diamantes, e no braço direito empunhava uma lança […]; o cavallo se adornava com sella, e arreyos cubertos de ouro, e na crina veriedade de fitas com galões e frocos de prata” (id. ibid.). Atrás, seguia a Irmandade do santo.

“E para que taõ grande concurso naõ degenerasse em alguma desordem, se dispoz, que todos caminhassem de dous em dous, com pausa, e modestia […].” (Machado 1759, p. 186)
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
Seguiam depois todas as irmandades formalmente constituídas, indo em primeiro lugar as sediadas em conventos, logo seguidas, “em lugar mais separado, e mais ilustre” (id. ibid., p. 172), pelas das igrejas seculares, “que todas levavaõ o mayor numero de assistentes, e mostravaõ a mesma gravidade” (id. ibid.). Todas as comunidades religiosas, irmandades e confrarias eram antecedidas por “Cruzes de prata de artificiosos feitios […] com preciosas mangas de téla, ou brocado” (id. ibid., p. 186) e, algumas, “levavão muy compridos, e largos guiões de seda, franjados, e bordados de ouro, representando em tarjas a Imagem dos Santos a quem veneraõ com mais devoçaõ, ou as emprezas, e symbolos das mesmas Confrarias” (id. ibid.).

“As Irmandades, e Confrarias naõ só levavaõ Cruzes de prata com preciosas mangas de téla, ou brocado […]” (Machado 1759, p. 186).
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
“[…] mas algumas levavão mui compridos, e largos guiões de seda, franjados, e bordados de ouro […]” (Machado 1759, p. 186).
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
“Era hum engraçado Menino, que nas pelles de Cordeiro, que vestia, e no que levava no braço esquerdo, como figura do Divino Sacramento, que adoramos, mostrava ser viva Imagem do Grande Bautista, e como a este Precursor de Christo no deserto lhe serviraõ os Anjos de companheiros […]” (Machado 1759, p. 167).
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

Procissão do Corpo de Deus: Ordens religiosas femininas
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

“Collegio dos Meninos Orfãos, ou desamparados. […] Vestiaõ o sey habito, que he tunica, e murça tecida de lã branca; e como todos saõ professores de Musica, era notavel a harmonia, a suavidade, e consonancia com que hiaõ cantando Hymnos, e Psalmos.”
(Machado 1759, p. 177)
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
Atrás destes, ia o clero secular com tochas e velas acesas, dispostos de dois em dois, seguindo-se-lhes os eclesiásticos da cúria, os ministros dos conselhos e tribunais, os cavaleiros das ordens de Cristo e de Santiago.

Procissão do Corpo de Deus: Ordem Militar de Avis
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

O conselho de Estado era presidido pelo rei. Os pajens e capelães do Patriarca abriam caminho à cruz patriarcal, enquadrada pelos ceroferários e pelos acólitos com as virgas rubras, e atrás da qual ia o cabido da sé e os nobres familiares do patriarca.

Procissão do Corpo de Deus: tintinábulos e basílica da Patriarcal
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

“Todo este illustrissimo Cabido hia pelas suas Jerarchias, sendo a primeira os Illustrissimos Diaconos revestidoscom Dalmaticas de preciosissima téla branca.” (Machado 1759, pp. 191-192)
“Todos estes Illustrissimos Conegos levavaõ Mitras na cabeça […].” (Ib. ibid., p. 193)
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
A anteceder o pálio, ia um beneficiado com o báculo do prelado, um capelão com a naveta do incenso, dois acólitos com turíbulos e os escudeiros do patriarca.

“[…] seguiaõ-se os dous Acolytos Patriarcaes com thuribulos de primorosa fabrica, que lancavaõ aromatico fumo em obsequio do Senhor sacramentado.” (Machado 1759, pp. 191-192)
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
O patriarca levava a custódia com o Sacramento, envolta pelo véu de ombros. Envergava falda, soerguida por dois subdiáconos, e capa magna, com as pontas erguidas seguras por dois diáconos e a cauda levantada pelos caudatários, numa evidente apropriação do cerimonial papal e ostentação dos respetivos privilégios. O pálio, “com grandeza proporcionada à majestade do Eminentissimo Patriarca, e mais assistentes” (id. ibid., p. 194), de nove panos de tela branca com franjas douradas, era sustido por oito varas. A ladeá-lo, seguiam os capelães com os flabelos e os seis masseiros com massas de prata, também sinais da majestade e poder do patriarca.

“Debaixo deste Palio hia o Eminentissimo, e Reverendissimo Patriarca com o Santissimo Sacramento na Custodia […].” (Machado 1759, pp. 191-192)
Procissão do Corpo de Deus
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017
O aparato da procissão implicava o próprio espaço urbano e seus residentes. Competia à Câmara garantir que as ruas por onde passava estivessem profusamente engalanadas, com tapeçarias e ornamentos dourados nas fachadas, as varandas e janelas cobertas por sanefas e cortinas de tecidos preciosos com franjas de ouro e prata (cfr. id. ibid., pp. 164-165). As ruas eram cobertas por toldos presos em mastros igualmente ornados de ouro e prata, dos quais pendiam medalhões, onde se apresentavam alegorias ao Sacramento e as armas patriarcais. O pavimento, no próprio dia, era atapetado com ervas e flores.

Entre o sagrado e o profano, a procissão do Corpo de Deus assumiu-se como um grandioso espetáculo barroco. “Todas as cidades e vilas do Reino a faziam com o maior esplendor que lhes era possível, mas a de Lisboa suplantava-as a todas pelo seu brilhantismo, sobretudo no tempo de D. João, em que atingiu o auge do esplendor […]” (Costa, 1989, 223). Em confronto com os exageros burlescos proibidos após Trento, a procissão ganhava uma feição de solene aparato, que espelhava a relação entre os poderes político e religioso e assumia a respetiva propaganda.

Esta grandiosa procissão barroca inspirou Diamantino Tojal, empresário e construtor civil, que, concebeu o projeto de reproduzir. Entre 1944 e 1948, concebeu e moldou em barro não cozido e policromado, 1587 miniaturas retratando, com grande acerto e alguns apontamentos deliciosamente caricaturais (embora o autor recusasse essa intenção), os participantes na procissão e seus apetrechos.

Procissão do Corpo de Deus: religiosa dominicana da Irmandade do Rosário
Diamantino Tojal, 1944-48
Col. Museu de Lisboa
Lisboa, antigo Convento da Graça
Foto: MIR, 2017

Apesar da sua dimensão, não é uma representação exaustiva, tendo sido encurtada, quer pela supressão de algumas confrarias e comunidades, quer pela redução dos elementos em cada grupo. Embora seja fruto de uma conceção pessoal, a execução das figurinhas segue a informação dos relatos da época e, por isso, este conjunto escultórico tem grande valor documental.

“Os elementos que nos ficaram da procissão do Corpo de Deus do séc. XVIII […] habilitaram o autor a persistir na sua ideia – que vinha de 1930 – de tentar esta reconstituição, que não tem pretensões eruditas, nem se arroga de segurança de adereços, de simbólica, de indumentária na representação de grupos cénicos dos ofícios, irmandades, dignidades e comparsaria.” (Tojal, 1948, s.p.)

Exposição “A procissão do Corpo de Deus na 1.ª metade do século XVIII”, 1948
Diamantino Tojal
Lisboa, Palácio Galveias
Foto: coleção Museu de Lisboa

Logo em 1948, o conjunto foi exposto no Palácio Galveias, por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa. Fazendo parte do acervo do museu municipal, não integra a exposição permanente do museu por óbvia falta de espaço6 Em 2016, para assinalar a reposição do feriado do Corpo de Deus, foram expostas algumas figurinhas nos Paços do Concelho, relançando a ideia da exposição de todo o conjunto.

Passado um ano, aproveitando novamente o pretexto da festa do Corpo de Deus, no dia 15 de junho de 2017, foi inaugurada a exposição “A procissão do Corpo de Deus por Diamantino Tojal”, numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Lisboa, do Museu de Lisboa, da Igreja da Graça e da Associação Mais Graça, aproveitando o espaço da sala do capítulo do Convento da Graça, aberto ao público pela primeira vez após as obras de restauro, igualmente realizadas no âmbito de um protocolo que envolveu a Câmara com a Fábrica Paroquial da Freguesia de Santo André-Graça e a Real Irmandade de Santa Cruz e Passos da Graça.

O suporte da obra, uma base longitudinal branca encimada por uma caixa acrílico mais estreita, aproveita o comprimento da sala, cujo eixo ocupa. É a própria obra que define e impõe o arranjo museográfico, correndo ao longo de todo o perímetro do plinto. Dado que a base é mais larga, a margem entre ela e a vitrina é aproveitada para dispor a indicação dos respetivos grupos, eventualmente, acompanhada por registos fotográficos da exposição nas Galveias. À entrada da sala, um cartaz com o texto e as imagens do desdobrável que acompanha a exposição, apresenta a procissão e a obra de Diamantino Tojal. A conceção é simples, mas revela-se eficaz, sobretudo, porque a obra é, ela própria, compreensível e elucidativa.

A comprová-lo, a afluência dos visitantes e o ritmo da visita na compreensão do facto representado e na descoberta dos pormenores. Quando abriu, estava prevista a abertura apenas no período de verão, encerrando a 1 de outubro; o prazo, entretanto foi adiado para 1 de julho.

Referências bibliográficas:
Conceição, C., O.F.M. (1827). Gabinete histórico … (v. 11). Lisboa: Imp. Regia.
Costa, A. J. (1989). A Santíssima Eucaristia nas constituições diocesanas portuguesas. Lusitania Sacra, s. 2, t. 1, 197-244.
Coutinho, J. E. R. (1988). Introdução geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas). Humanitas, 1, 419-436.
Gouveia, A. C. (2001). Procissões. In C. A. M. Azevedo, et al. (Coord.), Dicionário de história religiosa de Portugal (pp. 67-72), Lisboa, Círculo de Leitores.
Herculano, A. (1847). Eurico, o presbytero: O Monge de Cister (2.ª ed., v. 3). Lisboa: Imp. Nacional.
Igreja Católica. Concílio de Trento, 1545-1563. (1781). O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento em latim e portuguez dedica e consagra, aos… Arcebispos e Bispos da Igreja Lusitana, João Baptista Reycend. Lisboa: na Off. de Francisco Luiz Ameno.
Lisboa. Arquidiocese. (1656). Constituiçoes synodaes do arcebispado de Lisboa, novamente feitas no synodo diocesano que celebrou na Sé metropolitana de Lisboa… D. Rodrigo da Cunha em os 30 dias de mayo do anno de 1640. Concordadas com o sagrado concilio Tridentino, & com o dereito canonico, & com as constituições antigas, & extravagantes primeiras, & segundas deste arcebispado… Lisboa: Paulo Craesbeeck.
Machado, I. B. (1759). Historia critico-chronologica da instituiçam da festa, procissam, e officio do Corpo Santissimo de Christo… Lisboa: na Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno.
Miguel, A. D. (1967). Entremeses e representações na procissão do Corpo de Deus, no reinado de D. Manuel (1509-1514). Colóquio: Revista de Artes e Letras, (43), 65-67.
Procissão do Corpo de Deus. (1860). Archivo pittoresco: semanário illustrado, 3(14, 15), 109- 111, 114-115.
Tojal, D. (1948). A procissão do Corpo de Deus na 1.ª metade do século XVIII. [S.l.: s.n.] (Lisboa: Tip. Torres)

Cite this article as: Roque, Maria Isabel, "Procissão do Corpo de Deus em Lisboa," in a.muse.arte , 2018/01/05, https://amusearte.hypotheses.org/2116.
  1. Sequentia, ou sequência, é um trecho de canto gregoriano cantado durante a missa antes da leitura do Evangelho. Atualmente, após a reforma litúrgica de 1970, é cantada antes do Aleluia. [↩]
  2. Clementinae é a designação dada à compilação das coleções de direito canónico (decretais e constituições) promulgadas pelo Papa Clemente V, ordenada pelo seu sucessor João XXII e publicadas em 1317. [↩]
  3. Nome pelo qual é vulgarmente designado o Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis, um códice do Cabido da Sé de Coimbra, atualmente na Torre do Tombo (vd. Coutinho, 1988). [↩]
  4. Gil Vicente, por encomenda régia, terá composto dois autos: um, em 1504, dedicado à figura de S. Martinho e representado perante a rainha D. Leonor, na igreja de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha; outro, desaparecido, de que há notícia pelo respetivo documento de pagamento datado de 1511. [↩]
  5. O texto de Barbosa Machado, cuja primeira parte elabora um historial da solenidade, constitui a principal fonte documental para o estudo da procissão de 1719. O texto enconta-se transcrito, com uma ordenação gráfica mais legível com recurso a subtítulos e listas, no Gabinete Histórico (v. 11, pp. 159 e segs.), de Frei Cláudio da Conceição. [↩]
  6. Lembro-me de o ter visto, com imensa curiosidade, quando, ao preparar o trabalho final da pós-gradução em Museologia, sobre o Museu de Arte Antiga e o Museu da Cidade, a Dr.ª Edite Alberto me proporcionou o acesso a uma série de documentos, na sala onde as figurinhas se encontravam. Já nessa altura se falava da vontade de as expor, mas sem viabilidade aparente. [↩]

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