sábado, 7 de fevereiro de 2015

O Espaço Litúrgico: Centro e Foco

Texto de Kairo Rosa Neves de Oliveira


Algumas ideias tão simples e difundidas em nossas pastorais litúrgicas como "A comunidade se reúne em torno do altar" ou, em consequência desta, "O altar deve estar no centro da igreja" são assimiladas pelos fieis com muita naturalidade e muito raramente questionamos a origem e o real significado dessas ideias. Para entendê-las precisamos pensar, voltar aos conceitos mais básicos e nos indagar: o que é centro? E ainda, o altar realmente deve estar no centro?

A palavra "centro", tomando uma definição quase matemática se refere ao ponto de um espaço que está a uma mesma distância de suas partes mais externas, em uma linguagem mais simples: aquilo que está no meio. Um outro conceito, parecido, embora não idêntico é o de "foco", que por sua vez tem um sentido eminentemente óptico, como o ponto para o qual se encaminham os feixes de luz ou do qual se afastam, no nosso contexto litúrgico, podemos entender como sendo o ponto para o qual se voltam as atenções.
 

Embora numa linguagem abstrata e teórica as palavras possam ter um mesmo significado, referindo-se ao elemento principal, a ideia mais importante de dado contexto. Em um plano físico, e mais particularmente arquitetônico, diferem sensivelmente, uma vez que o centro do espaço pode não ser o local para o qual se voltam as atenções dos presentes.

Lembremo-nos da origem das igrejas no mundo latino. O primeiro tipo de igreja, ainda antes das basílicas eram as "domus ecclesiae", residências dos patrícios romanos que passaram ao uso eclesiástico. Estas habitações possuíam basicamente dois ambientes: atrium, ambiente menor, comunicava-se diretamente com a rua e era reservado aos serviços domésticos, ao seu centro ficava o impluvium, reservado para coleta da água pluvial; o segundo era perystilum, a verdadeira habitação familiar, que consistia de um jardim cercado por colunas ao fundo do qual se encontrava exedra, local reservado para receber convidados.



Atrium, foi reservado aos catecúmenos;  perystilum, aos fieis, dividindo-se segundo o sexo e colocando-se de um e de outro lado. O Bispo, servido pelo seu clero, realizava as funções na exedra. A escolha deste espaço e não do centro do perystilum parece ser justamente a diferença entre estar no centro e estar no foco. Estando ao fundo da Domus, o Bispo presidia a assembleia litúrgica, pronunciava as fórmulas sagradas e, assistido pela atenção de todos os fiéis, celebrava os sagrados mistérios.

Com o Édito de Milão, as Domus deram espaço às basílicas. As basílicas como eram chamadas os predios públicos romanos possuiam uma estrutura bastante simples e eficaz. Uma nave central, retangular, mais elevada com janelas para ventilação a iluminação, rodeada por naves laterais, duas ou quatro, mais baixas, foi este o lugar que ocupavam os fieis, dispostos como em Perystilum, de um e outro lado, ainda que o espaço central fosse agora coberto.




A estrutura dividida em três níveis, proveniente da domus foi mantido e aperfeiçoado na nova estrutura basilical. O atrio se tornou maior e passou a possuir colunas, como na figura abaixo, como se conserva ainda hoje na Basílica Maior de São Paulo fora dos Muros em Roma.


O antigo "presbitério", exedra, deu lugar a uma localização ainda mais prestigiosa e solene. Ao fundo da nave central, um semi-círculo concluía a construção: ábside. Nela foi disposta a cátedra do Bispo, o altar e, pouco mais adiante, o ambão. A abside, uma vez presente na liturgia das igrejas primitivas não se afastou da arquitetura sacra durante milhares de anos, ainda que se tenha modificado sensivelmente ao longo dos séculos. O motivo disso foi que ela proporciona um ponto monárquico dentro do espaço sagrado, seja pela sua posição frontal para todos se põem na nave central da igreja, seja pelo seu formato côncavo.

A primeira modificação que se pode destacar em relação às transformações da abside é que no primeiro milênio com a proeminência da figura episcopal, era mais natural colocar na abside propriamente dita a cátedra, como se vê na Catedral de Roma ainda hoje, figura abaixo.



No segundo milênio, a cátedra mais comumente foi disposta à direita, deixando o ponto monárquico para o altar. Isso se deve a uma maior valorização do ministério sacerdotal em relação àquele episcopal, proeminente no milênio anterior. Também as absides, embora mantivessem a concavidade, deixaram de se apresentar semi-circulares para adquirir formatos poligonais, em particular na arte gótica.


 A perda desse elemento arquitetônico usado desde as basílicas primitivas, passando pelas catedrais góticas e chegando até o barroco, não se deve ao fato de se ter encontrado uma forma melhor de dar destaque aos sagrados mistérios- Ao contrário, o desaparecimento das absides, foi uma perda de um conceito fundamental na liturgia: o foco. No lugar deste passou-se a dispor o espaço liturgico ao redor de um centro, que, como já dissemos nem sempre consegue apenas por sua localização concentrar as atenções.

Desse vício nascem duas realidades. A primeira é a reforma inadequada dos espaços litúrgicos já existentes. Neles, tenta-se a todo custo — da simetria, da beleza, da praticidade — instalar um altar no meio da assembleia, mutilando a beleza da arquitetura original e produzindo um estranho dualismo de altares. Nesses casos, existe um ponto para onde se voltam naturalmente as atenções, todavia ele não está no local onde se celebra.


 A segunda situação é a construção de novos espaços, onde o altar se põe no centro, os assentos dos leigos e dos clérigos se dispõem indiferentemente ao redor do mesmo, em um formato elíptico. Tudo se realiza ao redor do altar, ou  deste e do ambão. A atenção de cada qual se volta para aquilo que está à sua frente: o outro lado da assembleia.

 

Esse espaço sagrado trai o ideal da comunidade primitiva, da Domus Ecclesiae e rompe com a comunhão artística de tantos séculos. Pela abolição da exedra, do presbitério e da abside, nasce um espaço acéfalo, incapaz de representar a Igreja, corpo místico, do qual Cristo é a cabeça. Sendo adequado apenas para uma comunidade horizontal que celebra a si mesma, voltada para dentro de si.

Apesar dessa clara descontinuidade artística e eclesiológica, muitos se referem a esse modelo de igreja como uma alternativa participativa. Como se o modelo dito tradicional reproduzisse um teatro greco-romano, onde se distinguem duas partes em lados diferentes do ambiente: o público e os artistas. A esse argumento, cabe lembrar que também o picadeiro é um palco, ainda que o público se ponha ao redor.

Por fim, usa-se o Concílio Vaticano II para justificar toda e qualquer mudança em matéria litúrgica. Nesse caso em particular, poderia-se dizer que a constituição conciliar sobre liturgia diz claramente que "todos devem dar a maior importância à vida litúrgica da diocese que gravita em redor do Bispo, (...) especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do único altar a que preside o Bispo rodeado pelo presbitério e pelos ministros". Poderia-se dizer isso, ou poderíamos ir ao texto latino aprovado pelos padres conciliares e vermos que a expressão em negrito acima no original " ad unum altare", onde a preposição em nada se refere a estar ao redor, mas simplesmente estar ao altar.

Assim, torna-se claro que centro e foco não são conceitos intercambiáveis entre si e que ter o altar no centro, fisicamente falando, nunca foi uma necessidade litúrgica, urge, portanto, um trabalho técnico e artístico para relocar nos espaços litúrgicos a celebração dos sagrados mistérios, principalmente da sagrada Eucaristia, uma vez que não basta que Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de seu corpo e seu sangue estejam no centro do espaço sagrado.

É preciso ter foco nEle!


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