domingo, 23 de outubro de 2011

Uma Janela para a Eternidade


Monge pintor de ícones - sec. XVI (Rússia)

ÍCONES – UMA JANELA PARA A ETERNIDADE
Devido ao melhor conhecimento da teologia ortodoxa no Ocidente, especialmente por causa da presença de teólogos e filósofos russos ao exílio no Ocidente a partir da Revolução comunista de 1917, muitos de nós descobrimos o valor espiritual dos ícones para a oração e a contemplação.
Há o risco de separar o ícone da teologia, e ambos, da oração. Se o ícone vira apenas modismo, perde o sentido que lhe deu e dá a Igreja bizantina e a católica. Pavel Evdokimov, um dos grandes teólogos russos refugiados na França, definiu o ícone como “uma janela para eternidade”. Não se olha a janela, mas, pela janela se olha o panorama externo. No caso do ícone, pela fé o ícone nos abre os olhos e o coração para o eterno ali figurado. O ícone é sempre dogmático: suas linhas e cores expressam um conteúdo da fé cristã. O iconógrafo não é livre para pintar os ícones, pois deve obedecer à linguagem da fé explicitada pela Igreja. Como exemplo: as possibilidades de pintar um ícone da Natividade do Senhor são quase infinitas, porém, todas elas necessariamente contém os mesmos traços e cenários. A Verdade é uma, sua expressão é múltipla.
O ícone é palavra visível, pregação da verdade. Os judeus tinham uma mentalidade acústica (ouvi dizer, disseram nossos pais, eu vos digo...). Já os gregos são de mentalidade visiva (contemplar, meditar), donde a importância teológica e espiritual do ícone: eu vejo uma imagem, através dela ingresso no eterno, no divino.
A Palavra se fez carne (Jo 1,14) é o fundamento da arte sacra. A Apóstolo João inicia sua Carta declarando que escreve “o que ouvimos, o que vimos” (1Jo1,1). Com a encarnação, o acústico judeu (ouvimos) se une ao visivo grego (o que vimos). Essa unidade se dá no Cristo homem e Deus: falando, se manifesta como imagem do Pai e, ao mesmo tempo, sua Palavra.
Após a encarnação, toda a criação é apta para expressar o mistério, pois nela está encarnado o Filho de Deus. Toda a matéria utilizada na confecção de um ícone é matéria santa por natureza. O artista, dando-lhe forma, revela um ângulo do mistério da fé. Ele não inventa mistérios, e sim, desenha o conteúdo da fé da Igreja.

O iconógrafo – sacerdote da beleza

O iconógrafo não é um profissional que ganha a vida com ícones. Se isso acontecer, estamos apenas diante de uma obra humana, e não frente a uma obra divina. O iconógrafo pode ser comparado ao sacerdote que celebra a liturgia: “Ensina com as palavras, escreve com as letras, pinta com as cores, em conformidade com a tradição; a pintura é verdadeira como aquilo que está escrito nos livros: ali está presente a graça de Deus, porque o que é representado é santo” (Simeão o Novo Teólogo, Diálogo contra as heresias 23). “O sacerdote nos apresenta o Corpo do Senhor com os ofícios litúrgicos, com a força das palavras. O pintor o faz por meio da imagem” (Podlinnik – manual russo para os pintores de ícones).
Do mesmo modo que o sacerdote se recolhe em oração antes de celebrar os mistérios, o iconógrafo autorizado pela Igreja vive um mês de jejum a pão, água e sal, buscando a purificação interior com a oração e a contemplação do mistério que irá desenhar. A primeira pincelada é de cor branca, simbolizando a Luz que o iluminará e dará resplendor ao ícone. Tradicionalmente, o primeiro ícone é o da Transfiguração do Senhor: assim como o Cristo apareceu em forma luminosa no Monte Tabor, do mesmo modo o artista transfigurará a criatura para que revele a Verdade a ser contemplada.
A Jerusalém Celeste

O ícone um caminho para a Jerusalém celeste

O ícone é um instrumento de ascensão espiritual, pois a transparência do símbolo retorna ao que o contempla tornando-o sempre mais transparência da graça divina. Depois de passar uma vida contemplando os ícones, o orante se transformará, ele mesmo, em ícone da graça: sua face participará da transfiguração, será luminosa, plenamente bela como a harmonia das cores, dos traços, das formas desenhadas.
Graças ao amor, a natureza humana de Jesus está unida à sua natureza divina na pessoa de Cristo. Assim, é o amor que se manifesta na veneração, na oração diante do ícone que faz superar o abismo entre a arte humana e a visão do céu.
O ícone faz nossa oração ser dirigida ao Pai, afirma Evdokimov: passa-se dotypos (imagem) ao protótypos (pessoa pintada) e dele ao archetypos (Deus Pai, origem de todo bem). Contemplando o ícone da Mãe de Deus (typos) me elevo à Mãe de Deus (protótypos) e chego ao Pai, origem de todos os mistérios. É um caminho da Jerusalém terrestre à Jerusalém celeste.
O orante verdadeiro não é um crítico de arte, nem um mestre de palavras: é um homem ou mulher em silêncio diante do ícone, pois o ícone lhe fala, comunica pensamentos celestes e sentimentos transfigurados. Através da contemplação, o ícone lhe é um meio digno de transmissão da revelação divina.
Diante de um ícone, o devoto conserva acesa uma lamparina. A fumaça produzida pela chama com o tempo vai ocultando os traços luminosos do ícone. As preces feitas diante dele também o vão recobrindo de mistério, de graça. Talvez chegue um dia que quase não se verá mais com clareza a imagem icônica, ocultada pelas fumaça da lamparina e da oração de tantos fiéis. Nesse dia não estaremos mais diante de um ícone, mas dentro dele, em união mística com toda a Jerusalém celeste.
Pe. José Artulino Besen

Fonte: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/icone-uma-janela-para-a-eternidade.html


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