Fonte: SNP Cultura
A questão das imagens
Card. Joseph Ratzinger
No primeiro mandamento do Decálogo, onde se realça a singularidade do Deus Único a quem só cabe ser adorado, podemos ler a prescrição: «Não farás para ti imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto dos céus, ou do que existe em baixo, na terra, ou do que existe nas águas, por baixo da terra» (Ex 20, 4; cf. Dt 5,8). Existe, porém, uma exceção notável a respeito dessa proibição de imagens: trata-se do lugar mais Santo do interior do Antigo Testamento, que é a tampa de ouro da Arca da Aliança - na altura o lugar de penitência. «É ali que me encontrarei contigo», diz Deus a Moisés (Ex 25, 22). «É ali que te comunicarei todas as minhas ordens para os filhos de Israel.» (...)
Da Arca da Aliança para a imagem da ressurreição
Paulo entendeu Cristo crucificado como o «lugar da penitência» vivo e verdadeiro, do qual a Kapporeth - a «tampa» perdida desde o Exílio, só podia ser o prenúncio. Através de Jesus, Deus quase desvelou o seu rosto. O ícone da ressurreição de Cristo das igrejas orientais, cuja imagem apresenta Cristo em cima de uma tampa em forma de cruz que tanto significa o túmulo como remete para a Kapporeth da Antiga Aliança, refere-se à relação interior entre a Arca da Aliança e o Pascha Cristo. Neste ícone, Cristo é flanqueado pelos querubins e a imagem representa duas mulheres que se aproximam do túmulo a fim de o ungir. A imagem fundamental do Antigo Testamento mantém-se, embora tenha obtido um centro novo, devido à ressurreição: Deus já não é totalmente oculto, Ele mostra-se na figura do Filho. Esta transformação do relato da Arca da Aliança para a imagem da ressurreição diz o essencial sobre a evolução da Antiga para a Nova Aliança. Mas, para compreender bem tudo isso, havemos de seguir ainda de mais perto as grandes linhas dessa evolução.
Continuidade entre sinagoga e igreja
Enquanto no Islão e no Judaísmo, a partir do século III ou IV depois de Cristo, a postura a respeito da proibição de imagens era radical, de modo que apenas representações geométricas e não figurativas tenham sido concedidas como ornamentos de santuários, o Judaísmo do Tempo de Jesus e até ao século III apresentava uma interpretação da questão das imagens muito mais generosa. Paradoxalmente, as imagens da salvação revelam a mesma continuação entre sinagoga e igreja como já encontramos nas considerações do espaço litúrgico. Hoje podemos ver, graças a investigações arqueológicas, que as ornamentações das sinagogas antigas eram ricas em representações de cenários bíblicos. Elas não eram, de maneira alguma, consideradas como imagens de acontecimentos passados ou como uma espécie de ensino visual da História, mas sim como uma narração (<Haggada») que faz presente através de recordações; nas festas litúrgicas, os atos de Deus são atualizados.
As festas são a participação nos atos de Deus no Tempo, enquanto as imagens, como uma forma de memória, comparticipam na evocação litúrgica. As imagens cristãs encontradas nas catacumbas assemelham-se em muito ao cânone de imagens criado na Sinagoga, conferindo-lhe, contudo, um modo novo do presente. Os vários acontecimentos são atribuídos aos sacramentos cristãos e ao próprio Cristo. A Arca de Noé e a travessia do Mar Vermelho tornam-se indícios para o Batismo; o sacrifício de Isaac e a refeição dos três anjos com Abraão falam do sacrifício de Cristo e da Eucaristia. Acontecimentos de salvação, como o dos rapazes no forno ou de Daniel na gruta dos leões, transluzem a ressurreição de Cristo e de nós próprios. Ainda mais importante do que na Sinagoga é que as imagens não narram o passado, integrando os acontecimentos da História nos sacramentos.
Imagens de ressurreição, imagens de esperança
Na história passada, Cristo percorre os tempos com os seus sacramentos. Nós somos envolvidos nos acontecimentos. Os acontecimentos, pelo seu lado, ultrapassam a transitoriedade do Tempo, encontrando-se, através dos atos sacramentais da Igreja, presentes no meio de nós. A concentração cristológica de toda a História é simultaneamente a sua transmissão litúrgica, como também expressão de uma experiência nova de Tempo; onde o passado, o presente e o futuro se tocam, porque são inseridos na presença do ressuscitado. A presença litúrgica contém sempre - já o vimos e vemo-lo confirmado de novo - a esperança escatológica. Todas essas imagens são, num certo sentido, imagens de ressurreição, ou seja, a História lida com base na ressurreição; elas são, por conseguinte, imagens de esperança, transmitindo-nos a certeza do mundo futuro, da vinda definitiva de Cristo.
Ainda que essas primeiras imagens sejam muito pobres na sua qualidade artística, nelas concluiu-se um processo espiritual extraordinário, que está profundamente ligado com o princípio das pinturas sinagogais. A História será iluminada de novo, com vista à ressurreição, sendo assim compreendida como um caminho de esperança, para onde as imagens nos conduzem. Neste sentido, as pinturas das primeiras igrejas tanto têm caráter misterioso como significado sacramental, ultrapassando em muito o elemento didático da comunicação de histórias bíblicas.
Imagens que não são retratos
Nenhuma das primeiras imagens procura fazer uma espécie de retrato de Cristo. A imagem dele é antes uma imagem «alegórica», uma imagem do seu significado: Ele é representado como o verdadeiro filósofo, o que nos demonstra a arte da vida e da morte, como o Mestre, mas ele surge sobretudo na figura do pastor. Esta imagem da Sagrada Escritura era muito admirada na primeira Cristandade, pois o pastor era simultaneamente a alegoria do Logos: o Logos que tudo criou, que contém todas as imagens originais de todos os seres, ele é o pastor da Criação. Ao tornar-se pessoa, ele põe a ovelha perdida - a natureza humana ou a Humanidade em si - às suas costas e leva-a para a casa. A imagem do pastor é o resumo de toda a história da salvação: a entrada de Deus na História, a Encarnação, a procura da ovelha perdida e o caminho da sua recondução para a Igreja dos Judeus e dos Pagãos.
Imagens que a mão humana não desenhou; o sudário de Turim
Uma viragem de extenso significado na história de imagens da Fé foi o surgimento de um chamado Acheiropoietos - uma imagem com rosto de Cristo, considerada não ter sido feita pela mão humana. No Oriente, em meados do século VI, surgem quase simultaneamente duas dessas imagens «não feitas pela mão humana»: o chamado Kamulianium - a estampa da imagem de Cristo na roupa de uma mulher - e, mais tarde, o chamado Mandylion, que pelos vistos foi levado de Edessa, na Síria, para Constantinopla e que hoje muitos investigadores gostariam de identificar com o sudário de Turim. Em ambos os casos - tal como no caso do sudário de Turim - deve ter-se tratado de uma imagem misteriosa, uma imagem que não podia ser pintada por homens, misteriosamente estampada no tecido, prometendo mostrar o verdadeiro rosto de Cristo, do crucificado e ressuscitado.
Ver Deus, ver a eternidade
A aparição dessa imagem deve ter causado imensa fascinação. Doravante, era possível ver o verdadeiro rosto do Senhor, até lá oculto; isso compreendia-se como o cumprimento da promessa: «Quem me vê a mim, vê o meu Pai» (Jo 14,9). A vista para o Homem divino e assim para o próprio Deus parecia desvendada, cumprida era a saudade dos Gregos de olhar a eternidade. Em consequência, o ícone tinha de assumir o nível de um sacramento: ele permitia uma comunhão não menor do que a Eucaristia. O retratado da imagem era compreendido como uma espécie de presença real; no seu significado de plenitude e por não ter sido feita por homens, a imagem era tanto participação na própria realidade como emanação e presença daquele que na imagem se oferece. Será fácil de entender, que as reproduções dos Acheiropoietos tenham adquirido um lugar central em todo o cânone de imagens, que entretanto se criou e cuja evolução continuou a desenrolar-se em seu redor.
Iconoclasmo
É evidente que havia perigo de uma falsa sacramentalização da imagem, que parecia conduzir para além do sacramento e do seu mistério para a presença divina, direta e visível. E assim é claro que essa novidade era causa de movimentos de controvérsia, que motivou uma recusa radical de imagens a que chamamos Iconoclasmo - a destruição de imagens. O perigo da adoração de ídolos era indiscutivelmente uma das causas da intensidade do Iconoclasmo, embora também houvesse razões políticas. Não era do interesse dos imperadores bizantinos provocar, inutilmente, nem os Muçulmanos nem os Judeus. A supressão das imagens podia ser vantajosa, tanto para a unidade do império como também nas relações com os vizinhos muçulmanos. Cristo não poderia ser retratado, era a opinião. Apenas o símbolo da cruz (isento de imagem) poderia ser o seu selo. Havia duas alternativas - cruz ou imagem. Nessas lutas foi amadurecendo a verdadeira Teologia dos Ícones, cuja mensagem nos toca, especialmente no Ocidente, relativamente à atual crise de imagens.
Revelação em Emaús
O ícone de Cristo é o ícone do ressuscitado - isso, incluindo as consequências, era agora claro para todos. Não existe nenhum retrato do ressuscitado; os discípulos nem sempre o reconhecem. Eles devem ser conduzidos para conseguirem ver de um modo diferente, aprendendo a abrir os olhos para o interior, a fim de o reconhecerem novamente, exclamando: é o Senhor. A história mais característica é a dos discípulos de Emaús, cujo coração teve que ser primeiro reestruturado para conseguir, através das circunstâncias exteriores da Escritura, reconhecer o seu centro íntimo, de onde tudo vem e para onde tudo se dirige: a cruz e a ressurreição de Jesus Cristo. Então mandam parar o acompanhante misterioso, assegurando-lhe a sua hospitalidade quando, ao partir do pão, lhes sucede o mesmo que a Adão e Eva quando comeram o fruto da árvore do conhecimento, só que de modo inverso: os olhos abrem-se-lhes. Agora conseguem ver não apenas o exterior, mas também aquilo que os sentidos não distinguem de fora, que é aquilo que transluz por dentro: é o Senhor, que vive dum modo novo.
Ícone, jejum da vista, libertação dos sentidos
Não são essas as feições que caracterizam os ícones (embora seja mantida a forma essencial do Acheiropoietos); é uma visão diferente que surge neles. O ícone deve ter origem numa abertura dos sentidos interiores, numa providência que transcenda a superfície do empírico, para conseguir ver Cristo na luz do Tabor, como diz a Teologia dos Ícones. Ela guia o contemplador para dentro da figura que ela assumiu, para ele poder ver, excedendo os seus sentidos para o exterior e reconduzindo-os para o interior.
O ícone pressupõe, como diz Evdokimov, o «jejum da vista». Os iconógrafos - como ele diz - devem aprender a jejuar com os olhos, preparando-se, num longo caminho de ascetismo oratório, que marca a transição da arte para arte sacra (161). O ícone vem da oração e conduz à oração: ela liberta os sentidos, que normalmente só distinguem a superfície material, sem compreenderem nem a transparência do espírito nem a transparência do Logos na realidade. No fundo, trata-se da transcendência da Fé, sendo aqui presente todo o problema da compreensão dos nossos tempos: se os homens não abrirem o seu interior, a fim de poderem contemplar não só aquilo que é visível e mensurável, mas também para conseguir apreender o esplendor divino da Criação, então Deus permanecerá excluído da nossa vista.
O ícone corretamente compreendido afasta-nos da procura errada de um retrato visível, deixando-nos precisamente assim reconhecer a face de Cristo e nela a do Pai. Visto assim, o ícone contém a mesma orientação espiritual que conhecemos quando falámos da orientação a Oriente na Liturgia: ele quer envolver-nos num caminho interior, num caminho rumo a Oriente, rumo a Cristo que se está a aproximar. No todo, a sua dinâmica é idêntica à da Liturgia. A sua cristologia é trinitária: é o Espírito Santo que nos faz ver e cuja ação significa sempre um passo para se aproximar de Cristo. «Enlevados de Espírito bebemos Cristo», diz Santo Eutanásio (Evdokimov 176). O olhar que nos ensina a ver Cristo não «segundo a carne» mas sim segundo o Espírito (2Cor 5, 16) proporciona-nos simultaneamente a vista para o próprio Pai.
O invisível entra no visível
Só depois de ter compreendido esta orientação mental do ícone é que se consegue entender porque é que o segundo Concílio de Niceia e todos os seguintes Sínodos referentes a ícones, viam neles um testemunho da Encarnação, considerando assim o Iconoclasmo como a negação da Encarnação e soma de toda a heresia.
A Encarnação significa, em primeiro lugar, que Deus, o invisível, entra no espaço do visível, para que nós, que somos presos à matéria, o possamos reconhecer. Neste sentido, a Encarnação foi desde sempre incluída tanto nos atos da salvação da História como no falar sobre Deus.
Mas o ato de descer de Deus tem a missão de nos envolver num processo de elevação: a Encarnação visa a transformação através da cruz e do corpo novo da ressurreição. Deus procura-nos, onde nós estamos, não para permanecermos no sítio onde nos encontramos, mas sim para nos excedermos e irmos para Ele.
Consequentemente, uma redução da figura de Cristo ao «Jesus histórico» que pertence ao passado, falha tanto o significado da sua figura como o da Encarnação. Não podemos ficar desprovidos de sentidos, havemos de os abrir o mais possível. Só estamos a ver bem Cristo, dizendo como Tomé: «Meu Senhor e meu Deus.»
Tendo já constatado a extensão trinitária do ícone, então agora devemos alcançar a extensão da sua natureza: o Filho de Deus só podia encarnar no Homem, porque o Homem já era preconcebido à sua imagem, à imagem daquele que, por seu lado, é a imagem de Deus. A luz do primeiro e a luz do oitavo dia tocam-se no ícone, diz Evdokimov. Em toda a criação existe aquela luz que, no oitavo dia da ressurreição tal como no Mundo Novo, atinge a sua plena claridade, permitindo-nos ver o esplendor de Deus.
Incapacidade de apreender a transparência do espírito
A Encarnação só pode ser compreendida corretamente quando contemplada na sua ampla extensão da Criação, da História e do Mundo Novo. É aí que se torna evidente que os sentidos fazem parte da Fé, que o modo novo de olhar não os elimina, conduzindo-os ao desígnio da sua origem. No fundo, o Iconoclasmo apoia-se numa Teologia de apófase simplista, a qual conhece apenas o «totalmente-diferente» de Deus, que se encontra além de todo o imaginável e de todas as palavras, a ponto de até a revelação ser considerada como uma reflexão - humana e insuficiente - daquilo que sempre permanecerá impercetível. Chegando a esse ponto, a Fé desmorona.
Hoje, a nossa suscetibilidade é incapaz de apreender a transparência do espírito nos sentidos, o que implica quase obrigatoriamente o refúgio na, puramente «negativa», Teologia de Apófase: Deus encontra-se além de todo o pensamento e, por conseguinte, tanto as exposições sobre Ele como todas as formas da sua imagem, são ora válidas, ora inválidas.
Essa aparente humildade perante Deus transforma-se consequentemente em soberba, capaz de privar Deus de qualquer palavra, não lhe permitindo ingressar realmente na História. Por um lado, confere-se valor absoluto à matéria, declarando-a, por outro lado, como impermeável para Deus, por ser apenas matéria, privando-a assim de qualquer dignidade.
Mas - como diz Evdokimov -além do «não» apofásico, que nega qualquer semelhança, também há o «sim» apofásico. Ele salienta a opinião de Gregório de Palamas: a condição divina é radicalmente transcendente, contudo, Deus quer representar-se como um ser vivo na sua existência. Deus é totalmente diferente, mas Ele é suficientemente poderoso para se nos revelar; pois criou as suas criaturas de modo a serem capazes de o «ver» e amar.
Arte antiga
Com essas deliberações, tocamos tanto o nosso presente como também a evolução da Liturgia, da arte e da Fé no mundo ocidental. Pode a Teologia dos Ícones, concebida no Oriente, ser igualmente verdadeira e válida para nós, ou será que ela é apenas uma variante oriental do Cristianismo? Mais uma vez, vamos partir de factos históricos.
Até ao fim da arte romana, isto é, até ao início do século XIII, não há, no tocante à questão das imagens na antiga arte cristã, uma diferença significativa entre o Oriente e o Ocidente.
Apesar do Ocidente - pensando em Agostinho e Gregório Magno - ter salientado, com uma certa exclusividade, a função didática e pedagógica da imagem, os chamados Libri Carolini, tal como os Sínodos de Frankfurt (794) e de Paris (824) manifestam-se contra o sétimo Concílio Ecuménico - o segundo de Niceia - e que foi mal entendido; ele canoniza a superação do Iconoclasmo e a razão encarnadora do ícone. Eles insistem na opinião de que a função da imagem seja somente didática e pedagógica, dizendo «Cristo não nos salvou através de pintura» (Evdokimov 144).
Mas a temática e a orientação fundamental da pintura permaneceu igual, apesar da arte plástica, que surgiu no Ocidente, ainda não se ter iniciado no Oriente. Também na cruz Cristo continua ser o ressuscitado, o que a comunidade considera como o autêntico Oriens. E a arte continua a ser caracterizada pela unidade da criação, cristologia e escatologia: desde o primeiro até ao oitavo dia, o qual absorve o primeiro. A arte permanecerá integrada no mistério que se presencia na Liturgia. Ela permanece voltada para a Liturgia celeste. As figuras dos anjos da arte romana não divergem, no seu essencial, das da pintura bizantina; precisamente as últimas demonstram que, através dos Querubins e Serafins e com todas as forças celestes, participamos no louvor do Cordeiro - o véu entre o céu e a terra rasga-se, e nós somos levados para uma Liturgia que envolve o Cosmos inteiro.
Gótico
Com o começo do estilo gótico, dá-se início a uma mudança vagarosa. Muitas coisas mantêm-se constantes, designadamente a coerência interior característica entre o Antigo e o Novo Testamento que, por seu lado, continua a ser uma referência para o que estava pendente. Mas a imagem central será alterada. O Pantocrator - o imperador do mundo - deixará de ser representado como o que nos leva para o oitavo dia. Ele será substituído pela imagem do crucificado na sua paixão e morte dolorosas. Não se visualiza a ressurreição; é o decurso histórico da paixão que se narra. Essa narração do histórico surge agora no primeiro plano: dizia-se que a imagem misteriosa tinha sido substituída pela imagem meditativa. Muitos fatores devem ter participado nessa mudança do olhar.
Na opinião de Evdokimov, a mudança do Platonismo para o Aristotelismo, ocorrida no Ocidente no século XIII, desempenhou o seu papel. O Platonismo considera as coisas sensoriais como vultos das imagens primitivas nos quais podemos e devemos reconhecê-las e através deles alcançá-las. O Aristotelismo rejeita essa ideologia. O objeto, composto de matéria e de forma, existe simplesmente em si; é através da abstracção que reconhecemos a espécie à qual pertence. O lugar do olhar, ao qual se revela o transcendente através dos sentidos, é ocupado pela abstração. A alteração da proporção entre o espiritual e o material muda consequentemente também a atitude do Homem face à realidade que lhe surge.
Para Platão, a Beleza tinha um papel decisivo, onde o bom, o belo e, por fim, Deus, se unem. O surgimento da Beleza toma-nos vulneráveis no nosso íntimo, essa vulnerabilidade projeta-nos para além de nós próprios, fazendo-nos sentir a saudade de nos aproximar do Belo e do Bom. A Teologia dos Ícones preservou viva uma parte fundamental do Platonismo, contudo, ela transformou a sua ideia da beleza e da contemplação através da ideia da luz de Tabor; a conceção de Platão também foi profundamente alterada pelo contexto da Criação, cristologia e escatologia; o materialismo em si adquire uma dignidade e um valor novos.
História da Salvação: mais história do que sacramento
Esse Platonismo, modificado pela Encarnação, desapareceu quase por completo nos finais do século XIII, de modo que, a partir daqui, a arte plástica procura representar acontecimentos verídicos; a História da Salvação é vista mais como história que percorreu o Tempo do que como sacramento. Assim, é alterada também a relação para com a Liturgia, a qual passa a ser compreendida como a reprodução simbólica do acontecimento da crucificação.
Em consequência, a religiosidade dirige-se principalmente à contemplação dos mistérios da vida de Jesus. A arte encontra a sua inspiração mais na religiosidade do povo do que na Liturgia, e a religiosidade do povo, por sua vez, alimenta-se das imagens da História, em que pode ver o caminho para Cristo, o caminho do próprio Jesus e a sua continuação na memória dos Santos.
Separação Ocidente-Oriente
A separação do Ocidente e do Oriente no âmbito das imagens, que ocorreu a partir do século XIII é, sem dúvida, de considerável extensão; ela abre caminhos espirituais com motivos totalmente diferentes. A orientação para Oriens, para o ressuscitado que caminha à frente de nós, é substituída pela devoção à cruz, baseada mais no histórico.
Mesmo assim, essa diferença que se gerou não deveria ser exageradamente valorizada. A representação da dolorosa morte de Cristo na cruz é, sem dúvida, uma novidade, contudo, ela não deixa de representar aquele que sustentou as nossas dores, aquele cujos vergões foram a nossa salvação. Mesmo na extrema dor, ela representa o amor redentor de Deus.
Ainda que a crucificação na pintura da imagem de altar de Grünewald radicalize até ao extremo o realismo do sofrimento, facto é que, para os doentes da peste, cuidados pelos Antoninos, ela foi a imagem da consolação que lhes permitiu reconhecer a identificação de Deus com o seu destino; ver que Ele desceu para dentro do seu sofrimento e sentir o seu sofrimento inserido no sofrimento dele.
A inclinação perentória de Cristo para o humano, para o histórico, vive da relação entre a sua pena humana e o mistério. As imagens são consoladoras, porque os nossos tormentos parecem superados mediante a compaixão de Deus encarnado, contendo ao mesmo tempo a mensagem da ressurreição.
Abertura ao realismo do mistério transcendendo as aparências
Também essas imagens têm a sua origem na oração, na meditação interior sobre o caminho de Cristo; elas são identificações com Cristo, tendo por base o pensamento de que Deus se identificou connosco através dele. Elas abrem o realismo do mistério, mas não o abandonam.
E quanto à missa como presença da cruz, ela não se poderá compreender com uma nova ênfase através delas? O mistério será desdobrado até ao extremo concreto, podendo a religiosidade do povo, precisamente assim, conduzir também à substância da Liturgia, de uma maneira diferente.
Também essas imagens não mostram apenas a epidermis, o mundo exterior dos sentidos; também elas querem guiar-nos, transcender as meras aparências, a fim de abrir o nosso olhar para o coração de Deus.
O que foi aqui aludido através da imagem da cruz, tem validade para todo o resto da arte «narrativa» do gótico. Que força de interiorização há nas imagens de Nossa Senhora! O novo lado humano da Fé surge nelas. Tais imagens são convites para a oração, porque nelas transluz a oração interior. Elas mostram-nos a imagem verdadeira do Homem, como ele foi concebido por Deus e inovado por Cristo. Elas conduzem-nos à verdadeira existência humana.
E, finalmente, não nos podemos esquecer da magnífica arte dos vitrais góticos! As janelas das catedrais góticas retêm a luz ofuscante do exterior, envolvem-na, deixando transparecer nela toda a História de Deus com a Humanidade desde a Criação até ao retorno. Sob o efeito do Sol, as paredes tornam-se imagens, iconostases do Ocidente, conferindo ao espaço uma glória capaz de comover até o coração do agnosticista
Renascença
Não há dúvida de que a Renascença deu um passo totalmente novo. Ela «emancipa» os homens. Agora nasce a estética no sentido moderno - o espetáculo da beleza, cujo objetivo já não é apontar para além de si, mas que, como beleza das aparências, acaba por considerar-se autossuficiente. O Homem sente-se na sua plena grandeza e autonomia. A arte fala dessa grandeza, até parece ser surpreendida por ela; já não é necessário procurar outras belezas.
Muitas vezes quase não há nenhuma diferença entre as representações de mitos pagãos e da história cristã. É esquecido o peso da Antiguidade, já só se vê a sua beleza divina; surge a saudade dos deuses, dos mitos, de um mundo onde não haja nem medo do pecado nem o sofrimento da cruz, talvez demasiadamente inerentes às imagens da Idade Média tardia.
Ainda há representações de conteúdos cristãos, mas tal «arte religiosa» já não se pode designar como Arte Sacra no seu próprio sentido. Ela não se insere na humildade do sacramento, nem na sua dinâmica que transcende o Tempo. Ela quer gozar do hoje e salvá-lo com beleza. O Iconoclasmo da reforma é talvez mais fácil de compreender neste plano, embora as suas raízes sejam certamente mais extensas.
Barroco e Iluminismo
A arte barroca, que se segue à Renascença, apresenta variados aspetos e modos de realização. Na sua melhor forma, ela baseia-se na reforma da Igreja, iniciada com o Concílio de Trento que salientou, seguindo a tradição ocidental, o caráter didático-pedagógico da Arte, mas que, como o começo de uma renovação do interior, conduziu também a um olhar interior do nosso íntimo.
A imagem do altar é como uma janela, pela qual o mundo de Deus entra na nossa proximidade; o véu da temporalidade sobe e nós podemos olhar por um instante o interior do mundo divino. A arte barroca quer envolver-nos novamente na Liturgia celeste; sempre sentimos a Igreja barroca de novo como um fortíssimo da alegria, como aleluia que se tomou imagem: a alegria que temos no Senhor é a nossa força - essa palavra do Antigo Testamento (Ne 8, 10) expressa o sentido básico, do qual tal iconografia vive.
Posteriormente, o Iluminismo baniu a Fé para uma espécie de gueto intelectual e social; a cultura atual afastou-se dela e tomou um outro curso, de maneira que a Fé ou se refugiou no historicismo, imitando o passado, ou se perdeu na resignação e na abstinência cultural, o que posteriormente conduziu a um novo Iconoclasmo, que por muitos foi visto praticamente como o encargo do Concílio Vaticano II.
O Iconoclasmo, cujos primeiros sinais na Alemanha remontam com certeza aos anos vinte, eliminou muito de indigno e de Kitsch, mas também deixou um vazio, cuja pobreza estamos hoje a sentir fortemente.
Perspetivas para o futuro
Como é que as coisas hão de continuar? Vive-se atualmente uma crise numa dimensão jamais vista não só na Arte Sacra, mas também na Arte em geral. A crise da Arte reflete, por sua vez, a crise da existência humana que, precisamente em tempos de extremo aumento de domínio mundial ao nível material, atingiu - face às questões transcendentes de orientação humana a nível material - um estado de cegueira que quase pode ser designado como cegueira do espírito.
Deixou de haver respostas comuns a vários tipos de perguntas: como havemos de viver, como podemos lidar com o problema da morte, se a nossa existência tem um porquê e qual.
O positivismo, formulado em nome da seriedade científica, restringe o horizonte ao justificado, ao que se pode comprovar pela experiência; ele torna o mundo opaco. Ainda há matemática no mundo, mas o Logos, que é a condição prévia dela e da sua aplicação, já não se evidencia. Assim, o nosso mundo visual já não transcende as aparições dos sentidos, sendo a torrente de imagens que nos rodeiam simultaneamente o fim da imagem em si: além do fotografado, já não há nada para ver.
Sendo assim, nem a Arte dos Ícones nem a Arte Sacra podem existir, pois elas baseiam-se num olhar mais extenso; mas também a própria Arte que, no Impressionismo e no Expressionismo mais uma vez experimentou as mais extremas possibilidades do olhar sensorial, perde o seu conteúdo no próprio sentido da palavra. A Arte torna-se experimentação com mundos autocriados, «criatividade» fútil que já não distingue o Creator Spiritus - o espírito criador. Na tentativa de assumir o lugar dele, ela só consegue produzir o arbitrário e o fútil, evocando o absurdo da criatividade humana.
Mais uma vez: como continuar? (...)
Iconoclasmo não é opção
1. A isenção de imagens não é compatível com a Encarnação de Deus. Mediante os seus atos históricos, Deus entrou no mundo dos nossos sentidos, a fim de se tornar transparente em relação a ele. As imagens do belo, que tornam visível o mistério de Deus invisível, fazem parte do culto cristão. É certo que no vaivém dos tempos sempre haverá também alturas de relativa escassez de imagens. Contudo, elas nunca podem desaparecer por completo. O Iconoclasmo não é uma opção cristã.
Fontes da Arte Sacra
2. A Arte Sacra encontra os seus conteúdos nas imagens da História da Salvação, começando com a Criação e continuando pelo primeiro até ao oitavo dia - o dia da ressurreição e o dia do regresso, em que a linha da História se consome no círculo. A ela pertencem sobretudo as imagens da História Bíblica, mas também da História dos Santos como um desenrolar da História de Jesus Cristo, como o retorno da fertilidade do grão de trigo seco ao longo da História. «A tua luta não é apenas contra os ícones, ela também é contra os Santos», retorquiu João de Damasco ao Imperador Leão III, adversário de imagens; na mesma altura, em virtude da mesma opinião, o papa Gregório III instituiu a Festa de Todos os Santos (Evdokimov 141s).
Imagens de Cristo, imagens de Páscoa
3. As imagens da História de Deus com os homens não demostram apenas uma sucessão de acontecimentos passados, mas revelam a unidade interior dos atos de Deus. Elas remetem para o sacramento - sobretudo o Batismo e a Eucaristia - no qual se encontram intimamente ligadas, sendo assim uma referência para o futuro; elas são interiormente coerentes com os cultos da celebração.
Mas a História torna-se sacramento em Cristo, ele é a fonte dos sacramentos. É por isso que a imagem de Cristo é o centro da pintura sacra. O centro da imagem de Cristo é o mistério Pascha: Cristo é representado como o crucificado, o ressuscitado, o retornado, como rei ainda oculto. Todas as imagens de Cristo devem incluir esses três aspetos do mistério de Cristo; por outras palavras, devem ser imagens da Páscoa.
É evidente que pode haver várias acentuações: a imagem pode realçar a cruz ou a paixão e nela a aflição dos nossos dias, como pode fazer ressaltar a ressurreição ou o retorno. Uma imagem da cruz que não faça transluzir a Páscoa seria tão falhada como uma imagem da Páscoa que se tenha esquecido das chagas como presença do tormento. A imagem de Cristo centrada em Pascha será sempre também o ícone da Eucaristia, isto é, ela remete para a presença sacramental do mistério pascal.
Despertar os sentidos interiores
4. As imagens de Cristo e dos Santos não são fotografias. A sua natureza é conduzir para além daquilo que se consegue comprovar somente ao nível material, despertar os sentidos interiores tal como ensinar um novo olhar, capaz de distinguir o invisível dentro do visível.
A sacralidade da imagem baseia-se precisamente na sua proveniência do olhar interior, o qual gera uma visão interior. Ela deve ser fruto de uma contemplação interior, de um encontro da Fé com a nova realidade do ressuscitado que gera o olhar interior e leva ao encontro da oração com o Senhor.
As imagens são assistentes da Liturgia; consequentemente, a oração e a contemplação, em que elas se formam, devem participar na oração e na visão contempladora da Igreja: tanto a dimensão eclesiástica como a ligação interior à História da Fé, inclusivamente escritos e tradição, são componentes essenciais da Arte Sacra. (...)
Nota: subtítulos acrescentados pelo SNPC.
Joseph Ratzinger (Bento XVI)
In Introdução ao espírito da liturgia, ed. Paulinas
15.04.14
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