Guido Marini
“Introdução
ao espírito da liturgia” é o tema da conferência que o Mestre das
celebrações litúrgicas pontifícias pronunciou no dia 14 de Novembro, em
Gênova (Itália), a um grupo diocesano de animadores musicais da
liturgia. Publicamos alguns trechos da intervenção.
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É
urgente reafirmar o autêntico espírito da liturgia, do modo como está
presente na ininterrupta tradição da Igreja e tem sido testemunhado, em
continuidade com o passado, no magistério mais recente: a partir do
Concílio Vaticano II até Bento XVI. Usei a palavra “continuidade”. É um
termo querido ao actual Pontífice, que fez dele competentemente o
critério para a única interpretação correcta da vida da Igreja e, em
particular, dos documentos conciliares, assim como dos propósitos de
reforma a todos os níveis neles contidos. E como poderia ser diferente?
Porventura, podemos imaginar uma Igreja antes e outra depois, como se
tivesse sido produzida uma suspensão na história do corpo eclesial? Ou
então, podemos afirmar que a Esposa de Cristo entrou, no passado, num
tempo histórico no qual o Espírito não a tenha assistido, de modo que
este tempo deva ser quase esquecido ou apagado?
E
no entanto, às vezes, algumas pessoas dão a impressão de que aderem
àquela que é justo definir como uma verdadeira ideologia, ou seja, uma
idéia preconcebida, aplicada à história da Igreja e que nada tem a ver
com a fé autêntica.
É
fruto dessa ideologia, desviante, por exemplo, a repetida distinção
entre Igreja pré-conciliar e Igreja pós-conciliar. Tal linguagem pode
até ser legítima, contanto que não se compreendam deste modo duas
Igrejas: uma – a pré-conciliar – que nada teria a dizer ou dar porque
está irremediavelmente superada; e a outra – a pós-conciliar – que seria
uma realidade nova nascida do Concílio e de um seu presumível
espírito, em ruptura com o seu passado.
O
que se afirmou até agora acerca da “continuidade” tem algo a ver com o
tema que fomos chamados a enfrentar? Sim, de maneira absoluta. Porque
não pode existir o autêntico espírito da liturgia se não nos
aproximarmos dela com ânimo sereno, não polémico acerca do passado, quer
remoto quer próximo. A liturgia não pode nem deve ser terreno de
conflito entre quem encontra o bem só naquilo que estava antes de nós e
quem, ao contrário, no que estava antes encontra quase sempre o mal. Só
a disposição para olhar o presente e o passado da liturgia da Igreja
como um património único e em desenvolvimento homogéneo pode
conduzir-nos a haurir com júbilo e gosto espiritual o autêntico
espírito da liturgia. Por conseguinte, é um espírito que devemos
receber da Igreja e que não é fruto das nossas invenções. Um espírito,
acrescento, que nos leva ao essencial da liturgia, ou melhor, à oração
inspirada e guiada pelo Espírito Santo, na qual Cristo continua a vir
até nós contemporâneo, a fazer irrupção na nossa vida. Deveras o
espírito da liturgia é a liturgia do Espírito.
Na
medida em que nos assemelhamos ao autêntico espírito da liturgia,
tornamo-nos também capazes de entender quando uma música ou um canto
podem pertencer ao património da música litúrgica ou sacra. Noutras
palavras, capazes de reconhecer a única música que tem direito de
cidadania no rito litúrgico, porque é coerente com o seu espírito
autêntico. Então, se no início deste curso falámos sobre o espírito da
liturgia, fizemo-lo porque só a partir dele é possível identificar quais
são a música e o canto litúrgico.
Em
relação ao tema proposto não pretendo ser cabal. Nem tratar todos os
temas que seria útil enfrentar para um panorama completo da questão.
Limito-me a considerar alguns aspectos da liturgia com referência
específica à celebração eucarística, assim como a Igreja os apresenta e
do modo como aprendi a aprofundá-los nestes dois anos de serviço ao
lado de Bento XVI: um verdadeiro mestre de espírito litúrgico, quer
através do seu ensinamento, quer do exemplo da sua celebração.
A participação activa
Os
santos celebraram e viveram o acto litúrgico participando
concretamente nele. A santidade, como êxito da sua vida, é o testemunho
mais bonito de uma participação deveras viva na liturgia da Igreja.
Portanto, de modo justo e providencial, o Concílio Vaticano II insistiu
muito sobre a necessidade de favorecer uma participação autêntica dos
fiéis na celebração dos santos mistérios, no momento em que recordou a
chamada universal à santidade. Esta indicação competente encontrou
confirmação e relançamento pontuais nos inúmeros documentos sucessivos
do magistério até aos nossos dias.
Contudo,
nem sempre houve uma compreensão correcta da “participação activa”, da
maneira como a Igreja ensina e exorta a vivê-la. Certamente,
participa-se activamente inclusive quando se realiza, dentro da
celebração litúrgica, o serviço que é próprio a cada um; quando se tem
uma compreensão melhor da Palavra de Deus ouvida e da oração recitada;
quando se une a própria voz à dos outros no canto coral… Entretanto,
tudo isto não significaria participação verdadeiramente activa se não
conduzisse à adoração do mistério de salvação em Jesus Cristo morto e
ressuscitado por nós: porque só quem adora o mistério, acolhendo-o na
própria vida, demonstra ter compreendido o que se está a celebrar e, por
conseguinte, ser autenticamente partícipe da graça do acto litúrgico.
A
verdadeira acção que se realiza na liturgia é a acção do próprio Deus,
a sua obra salvífica em Cristo a nós participada. Esta, entre outras, é
a verdadeira novidade da liturgia cristã em relação às outras acções
cultuais: o próprio Deus age e realiza o que é essencial, enquanto o
homem é chamado a abrir-se à acção de Deus, com a finalidade de
permanecer transformado nela. O ponto essencial da participação activa,
consequentemente, é que a diferença entre o agir de Deus e o nosso seja
superada, que nos possamos tornar um só em Cristo. Eis porque não é
possível participar sem adorar. Escutemos ainda um trecho da Sacrosanctum concilium:
“É por isso que a Igreja procura, solícita a cuidadosa, que os
cristãos não assistam a este mistério de fé como estranhos ou
espectadores mudos, mas participem na acção sagrada, consciente,
piedosa e activamente, por meio de uma boa compreensão dos ritos e
orações; sejam instruídos na Palavra de Deus; se alimentem na mesa do
Corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si
mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos
dele, a hóstia imaculada; que dias após dia, por Cristo Mediador,
progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja
tudo em todos” (n. 48).
Em
relação a isto, o restante é secundário. Em particular, refiro-me às
acções exteriores, não obstante importantes e necessárias, previstas
sobretudo durante a Liturgia da Palavra. Cito-as porque se se tornarem o
essencial da liturgia e forem reduzidas a um agir genérico, então o
autêntico espírito da liturgia ficará subentendido. Consequentemente, a
verdadeira educação litúrgica não pode consistir simplesmente na
aprendizagem e no exercício de actividades exteriores, mas na introdução
à acção essencial, à obra de Deus, ao mistério pascal de Cristo pelo
qual se deixar alcançar, envolver e transformar. E não se confunda a
realização de gestos externos com o justo envolvimento da corporeidade
no acto litúrgico. Sem nada subtrair ao significado e importância do
gesto externo que acompanha o acto interior, a Liturgia exige muito mais
do corpo humano. De facto, requer o seu total e renovado empenho na
quotidianidade da vida. É o que Bento XVI chama “coerência eucarística”.
Justamente o exercício pontual e fiel dessa coerência é a expressão
mais autêntica da participação inclusive corpórea no acto litúrgico, na
acção salvífica de Cristo.
Acrescento
ainda. Estamos certos de que a promoção da participação activa
consiste em tornar tudo o mais possível e imediatamente compreensível?
Será que o ingresso no mistério de Deus às vezes pode ser acompanhado
melhor pelo que senibiliza as razões do coração? Em alguns casos, não
acontece que se dá um espaço desproporcionado à palavra, maçadora e
banalizada, esquecendo que à liturgia pertencem palavra e silêncio,
canto e música, imagens, símbolos e gestos? E, porventura, a língua
latina, o canto gregoriano e a polifonia sacra não pertencem a esta
múltipla linguagem que introduz no centro do mistério e, portanto, na
verdadeira participação?
Qual música para a liturgia
Não
compete a mim aprofundar o que concerne à música sacra ou litúrgica.
Outros, com mais competência, tratarão o temo no decurso dos próximos
encontros.
Entretanto,
oq eu gostaria de realçar é que a questão da música litúrgica não pode
ser considerada independentemente do autêntico espírito da liturgia e,
por conseguinte, da teologia litúrgica e da espiritualidade que deriva
dela. Então, o que se afirmou – ou seja que a liturgia é um dom de
Deus que a Ele nos orienta e que, mediante a adoração, nos permite sair
de nós mesmos para nos unir a Ele e aos outros – não só procura
fornecer alguns elementos úteis para a compreensão do espírito
litúrgico, mas também elementos necessários ao reconhecimento do que
música e canto verdadeiramente podem dizer à liturgia da Igreja.
A
propósito, permito-me uma breve reflexão orientativa. Poder-se-ia
perguntar o motivo pelo qual a Igreja nos seus documentos, mais ou menos
recentes, insiste em indicar um determinado tipo de música e de canto
como especialmente conformes com a celebração litúrgica. Já o Concílio
de Trento inteviera no conflito cultural então em acto, restabelecendo a
norma pela qual na música a aderência à Palavra é prioritária,
limitando o uso dos instrumentos e indicando uma clara diferença entre
música profana e música sacra. Com efeito, a música sacra nunca pode ser
entendida como expressão de pura subjectividade. Ela está ancorada nos
textos bíblicos ou da tradição, e deve ser celebrada na forma de
canto. Em época mais recente, o Papa São Pio X interveio de modo
análogo, procurando afastar a música operística da liturgia e indicando
o canto gregoriano e a polifonia da época da renovação católica como
critério da música litúrgica, para que fosse diferenciada da música
religiosa em geral. O Concílio Vaticano II afirmou as mesmas
indicações, assim como as intervenções magisteriais mais recentes.
Por
que, então, a insistência da Igreja em apresentar as características
típicas da música e do canto litúrgico, de tal modo que permaneçam
distintos de todas as outras formas musicais? E por que o canto
gregoriano como a polifonia sacra clássica resultam ser formas musicais
exemplares, à luz das quais continuar hoje a produzir música litúrgica,
inclusive popular?
A
resposta a esta pergunta está exactamente naquilo que procuramos
afirmar a propósito do espírito da liturgia. São precisamente aquelas
formas musicais – na sua santidade, bondade e universalidade – que
traduzem em notas, melodia e canto o autêntico espírito litúrgico:
orientando para a adoração do mistério celebrado, favorecendo uma
participação autêntica e integral, ajudando a compreender o sagrado e,
portanto, a primazia essencial da acção de Deus em Cristo, permitindo um
desenvolvimento musical não desligado da vida da Igreja e da
contemplação do seu mistério.
Permiti-me
uma última citação de Joseph Ratzinger: “Gandhi evidencia três espaços
de vida dos cosmos e mostra como cada um destes três espaços vitais
comunica também um modo próprio de ser. No mar vivem os peixes, que se
calam. Os animais sobre a terra gritam, mas os pássaros, cujo espaço
vital é o céu, cantam. Calar é próprio do mar; gritar, da terra; cantar,
do céu. Contudo, o homem participa nos três: ele traz em si a
profundidade do mar, o peso da terra e a elevação do céu; por isso são
suas também as três propriedades: calar, gritar e cantar. Hoje (…) vemos
que ao homem sem transcendência permanece apenas o gritar, porque quer
ser só terra e procura fazer tornar-se terra inclusive o céu e a
profundidade do mar. A verdadeira liturgia, a liturgia da comunhão dos
santos, restitui-lhe a própria totalidade. Ensina-lhe de novo o calar e o
cantar, abrindo-lhe a profundidade do mar e ensinando-lhe a voar, a
essência do anjo; ao elevar seu coração, faz ressoar de novo nele aquele
canto que se tinha quase adormecido. Aliás, podemos dizer até que a
verdadeira liturgia se reconhece exactamente pelo facto que nos liberta
do agir comum e nos restitui a profundidade e a elevação, o silêncio e o
canto. A verdadeira liturgia reconhece-se pelo facto que é cósmica,
não sob medida para um grupo. Ela canta com os anjos. Cala-se com a
profundidade do universo em expectativa. E assim, redime a terra” (Cantate al Signore um canto nuovo, PP. 153-154)
Concluo.
Já há alguns anos, na Igreja fala-se sobre a necessidade de uma
renovação litúrgica. De um movimento, de qualquer modo semelhante ao que
lançou as bases para a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II,
que seja capaz de actuar uma reforma da reforma, ou melhor ainda, um
passo em frente na compreensão do autêntico espírito litúrgico e da sua
celebração: levando a cabo dessa maneira a reforma providencial da
liturgia que os Padres conciliares começaram, mas que nem sempre, na
actuação prática, encontrou uma realização pontual e satisfatória.
Fonte: L’Osservatore Romano
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