Arte e Caridade (Parte I)
O aspecto jurídico da arte sacra
Depois de haver afrontado nos dois artigos precedentes publicados na rubrica
Reflexões sobre Arte[2] a
relação profunda que ocorre entre a dimensão estética e a dimensão
moral na inteira esfera do "fazer" artístico, seja à luz do Decreto
Conciliar
Inter Merifica, ou em suas derivações no Catecismo da
Igreja Católica, julgamos necessário fazer agora um passo ulterior em
direção a um aprofundamento em âmbito jurídico, com a finalidade de
evidenciar as várias coimplicações que na questão artística se
explicitam à luz de uma correta interpretação do texto jurídico.
Poder-se-á, então, compreender como a arte, enquanto ligada intimamente à
questão moral, tenha uma relação profunda com o bem do homem e,
portanto, com a justiça, e consequentemente está entre as formas
supremas da caridade, própria do homem de Deus e dever iniludível da
Igreja.
O que diz respeito ao aspecto jurídico da questão artística,
devemos partir de um cânone essencial, que aparentemente parece genérico
e pouco detalhado, mas que na realidade esconde um tesouro que se deve
valorizar atentamente. De fato, no Código de Direito Canônico, o cânon
1216 diz: «no construir e restaurar as igrejas, com o conselho de
peritos se observem os princípios e normas da Liturgia e da arte sacra».
Em primeira instância se pode observar que no construir e no restaurar
uma igreja, se devem observar
"princípios e normas" próprios, seja da liturgia como da arte sacra. Portanto, remete a um âmbito normativo que é
próprio da arte sacra, como o é da liturgia, ou seja, indica-se uma dimensão da arte
para a liturgia e mais em geral da arte cristã (católica) que tem seu próprio estatuto, ou seja, é normatizada e possui princípios
[3].
Estes princípios obrigatoriamente devem ser observados, de forma que não é lícito introduzir pinturas, edificar
ex novo ou restaurar uma igreja, porque a dimensão jurídica do cânone é clara, a partir do momento que diz:
"observem-se" os princípios e as normas. Mas, mais profundamente se compreende que no campo da arte sacra, há uma dimensão
normativa que
é explicitada a partir da sua dizibilidade em âmbito jurídico. Em
outras palavras: se a arte sacra não fosse sujeita a regras, normas e
princípios não seria dizível em âmbito jurídico e, portanto, seria
totalmente desvinculada de toda relação seja em âmbito ético ou
estético; e consequentemente exposta completamente à relatividade do
gosto pessoal ou da teoria estética em moda em um particular momento
histórico, sem algum vínculo filosófico, teológico e antropológico.
Como ao contrário vimos nos dois artigos precedentes, a respeito do Decreto
Inter Merifica,
que afirma não ser possível admitir "falsas teorias éticas" e "falsas
teorias estéticas" expondo de fato a questão da comunicação de uma área
genericamente descrita a uma normatizada e havendo princípios e regras
próprias, conduzindo a questão da comunicação – e, portanto, também a da
arte que é desde sempre um dos instrumentos mais importantes da
comunicação social – ao interno do âmbito moral e a partir dessa àquela
do direito.
Confirmando esta impostação, o Catecismo da Igreja Católica introduz a
questão artística, não em um lugar genérico a respeito das atividades
antropológicas sociais e/ou individuais próprias do homem, mas mais
especificamente na descrição do oitavo mandamentos, nos artigos
2500-2505: «Não levantar falso testemunho contra o teu próximo» (Ex
20,16), «Foi dito aos antigos: "Não jurarás"» (Mt 5,33). Os artigos do
Catecismo de fato, retomam e desenvolvem seja o número 6 no
Inter Merifica ou os artigos 122-129 da
Sacrossanctum Concilium, como já explicado em outro momento.
A partir daqui é evidente que não se pode liquidar a questão da arte
sacra como uma interpretação "subjetiva", reduzindo-a a opiniões pró ou
contra o conceito de belo ou de verdadeiro ou de bom. O Cânone 1216 do
Código de Direito Canônico, volta a trazer no âmbito das normas, e
inequivocadamente o
Inter Merifica esclarece que as falsas
teorias estéticas não podem de modo algum ser introduzidas na
comunicação e na arte conexa à formação espiritual, moral, intelectual e
catequético do fiel.
O Código de Direito Canônico quando fala sobre a pregação, no cânone
769, diz: «a doutrina cristã seja proposta em modo conforme a condição
dos que a escutam e adaptado às necessidades do tempo». Para compreender
que esta norma se estende também à arte sacra, deve-se fazer referência
ainda uma vez ao catecismo, que afirma: «A
arte sacra é
verdadeira e bela quando, na sua forma, corresponde à vocação que lhe é
própria: evocar e glorificar, na fé e na adoração, o mistério
transcendente de Deus»
[4], e ao mesmo tempo se deve ter presente
como na tradição da Igreja que a pintura seja considerada como uma forma
de pregação por assim dizer "muda"
[5], capaz, ao lado da
pregação, de "comunicar" Cristo aos fieis. Assim se compreende como a
questão da arte sacra não se limita exclusivamente no seu máximo
vértice, que é o eminentemente litúrgico, mas que diz respeito também um
aspecto que se pode definir como catequético, que implica, seja a
dimensão moral (parenética) da arte, composta de exemplos capazes de
suscitar e formar as almas, seja numa dimensão
mistagógica, que permite a penetração da verdade de fé.
Compreende-se também que a arte sacra não há um dever elitário, não é
para poucos, mas antes deve voltar-se para todos, deve se adaptar às
condições culturais dos fieis, que caritativamente necessitam de ajuda (
pauperes no sentido mais pleno do termo) devem ser educados através da
pregação muda
da arte sacra, e conduzidos a uma plenaedificação da pessoa na sua
inteireza. A arte tem o dever de educar para o bem, como recordava já no
ano 1582 o cardeal Gabriele Paleotti no seu imprescindível
Discurso em torno das imagens, e a beleza é ligada ao bem e ao verdadeiro, como reforça o
Catecismo no
artigo 2500: «a prática do bem é acompanhada por um prazer espiritual
gratuito e pela beleza moral. Ao mesmo modo, a verdade se une à alegria e
ao esplendor da beleza espiritual. A verdade é bela por si mesma».
(Tradução:Ir. Patricia Souza pmmi)
[1] Especialista no XIII Sínodo do Biscopos, professor de
História das teorias estéticas na Pontifícia Universidade Urbaniana de
Roma, Artista, Acadêmico Pontifício. Website:
www.rodolfopapa.it Blog:
http://rodolfopapa.blogspot.com e-mail:
rodolfo_papa@infinito.it.
[2] Cfr PAPA, R.
Arte e Moral. A profunda atualidade do Decreto Conciliar Inter Merifica (publicado por www.zenit.org em 17/12/12 e PAPA, R.
Arte e Moral. Ainda sobre a atualidade do Decreto Conciliar Inter Merifica. (publicado por www.zenit.org em 07/01/13).
[3] CDC, Cân. 1216
[4] CIC, 2502.
[5] MARINO, E.
Il beato Angelico: como a pintura, assim a pregação; como a pregação, assim a pintura. Conferência para o jubileu dos artistas, Roma. 2003.