segunda-feira, 18 de julho de 2016

O homem que esculpiu um Aleijadinho

O artista abaixo não sabia, mas uma obra sua apareceu num museu como se fosse de Aleijadinho – o escultor colonial favorito dos falsários e golpistas

Por MARCELO BORTOLOTI


FALSIFICAÇÃO
O escultor Marcos Bernardes. “Fiquei indignado. Uma obra é como se fosse um filho, e a estão usando para um golpe” (Foto: Leo Drumond/Nitro/ÉPOCA)

O mineiro Marcos Bernardes, de 42 anos, é escultor de imagens sacras e mora em Conselheiro Lafaiete, a 100 quilômetros de Belo Horizonte. Ele aprendeu a profissão com o pai, também escultor, que o levava ainda criança para visitar as igrejas de Congonhas, onde estão algumas das mais importantes obras de Aleijadinho. Foi ali que Marcos conheceu a produção do mestre do barroco mineiro, influência mais forte de sua carreira. Ele se especializou em fazer imagens de santos muito parecidas com as obras que Aleijadinho esculpiu no século XVIII. Sempre teve farta clientela para suas esculturas. Em 2008, num dia de inspiração, Marcos produziu em madeira uma bela imagem de São Francisco, com os braços abertos e uma singular expressão de piedade no rosto. Gravou seu nome no pedestal da estátua e conseguiu vendê-la no Rio de Janeiro por R$ 2 mil.

Há dois meses, Marcos tomou um susto ao descobrir que o São Francisco criado por ele estava numa exposição no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, em Brasília. E mais: aparecia identificado como de autoria do próprio Aleijadinho. O catálogo informava que a peça fora feita entre 1781 e 1790, fase de maturidade plena do mestre mineiro. A comparação não deixou Marcos envaidecido. A imagem tinha sido intencionalmente adulterada para parecer mais velha. Algumas partes foram cobertas de tinta, e a assinatura dele fora raspada do pedestal. “Fiquei indignado. Uma obra é como se fosse um filho da gente, e a estão usando para um golpe”, diz.

"Esta exposição do Aleijadinho é uma fraude, não pode continuar rodando pelo país"
ANGELO OSWALDO, PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

A exposição na Caixa foi concebida para ser o ponto alto da comemoração dos 200 anos da morte de Aleijadinho. Considerado o escultor mais importante do período colonial brasileiro, ele morreu em 1814, vítima de uma doença que deformou seus membros e até hoje não foi esclarecida. A mostra exibia 47 obras atribuídas a Aleijadinho, entre elas o São Francisco de Marcos, a única contemporânea. Entre as peças havia outras imagens mais antigas também suspeitas, que indignaram especialistas em arte barroca. “Oitenta por cento do que foi exibido não era Aleijadinho. Essa exposição é uma fraude, um grande equívoco, infelizmente foi selecionada pelo edital da Caixa. Mas não pode continuar rodando pelo país”, diz Angelo Oswaldo, presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Angelo tem intimidade com a produção de Aleijadinho. Ele já foi prefeito de Ouro Preto e presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Quem endossa sua opinião é Myriam Ribeiro, considerada uma das maiores autoridades do país na obra de Aleijadinho. Ela é mais incisiva. “Não havia nenhuma peça de Aleijadinho naquela exposição”, diz.

A mostra ficou em cartaz na Caixa Cultural de Brasília até maio. Em outubro, ela deverá seguir para o Centro Cultural da Caixa no Recife e, no começo do ano que vem, está programada para o espaço da Caixa em Fortaleza. Somente em Brasília, a montagem custou R$ 240 mil. A exposição foi visitada por 36 mil pessoas. No catálogo, a Caixa informa que gasta R$ 60 milhões por ano com projetos culturais. Apesar da controvérsia, a assessoria da Caixa diz que não há impeditivo para que a exposição continue e afirma não ter recebido nenhuma queixa formal do Ibram. Também esclarece que a mostra foi escolhida pelo edital de ocupação de espaços culturais em 2013 e levou em consideração a importância de Aleijadinho e a cenografia.

Desde que Mário de Andrade e o grupo dos modernistas se engajaram na valorização da obra de Aleijadinho, na década de 1920, ele se tornou símbolo da brasilidade. Essa marca chamou também a atenção no mercado de arte, onde ele se tornou o mais valorizado do período colonial e altamente cobiçado pelos colecionadores. Uma escultura como o São Francisco, vendido por R$ 2 mil por Marcos, passa a valer mais de R$ 150 mil se atribuída a Aleijadinho.

Aleijadinho não assinava suas peças, produzidas há mais de 200 anos. As atribuições são feitas comparando o estilo da imagem estudada ao traço das esculturas reconhecidas como de Aleijadinho, como os profetas de Congonhas do Campo. Nos últimos anos, apareceram centenas de obras suspeitas. Muitos colecionadores foram logrados e começaram a surgir mecanismos maliciosos para esquentar as peças e dar credibilidade à atribuição.

Um desses mecanismos é a exposição em espaços importantes, como o Centro Cultural da Caixa. Uma obra exibida num bom museu acaba exposta nos catálogos que geralmente acompanham a exposição e ganha uma espécie de chancela. Isso serve de argumento para o marchand que quer provar sua boa procedência. Vale tanto para dar credibilidade a obras do século XVIII, mas de autoria incerta, quanto a imagens contemporâneas e evidentemente falsas – caso do São Francisco produzido por Marcos.

A trajetória dessa peça mostra como uma imagem de outro autor pode se transformar num “autêntico”Aleijadinho. Em 2008, Marcos vendeu a obra a um marchand no Shopping dos Antiquários, no Rio de Janeiro. O primeiro comprador passou a imagem a outro marchand do Rio chamado Carlos Brown. Brown afirma que a revendeu em 2009, por R$ 2.400, ainda com a assinatura de Marcos. “A peça foi vendida para um colecionador do Texas, nos Estados Unidos, que chegou até mim por indicação de guias turísticos”, diz.

Dois anos depois, a imagem reapareceu no Brasil, já envelhecida e sem a assinatura de Marcos. Não há pistas sobre quem fez a alteração. Na época, a peça recebeu um laudo feito pelo historiador mineiro Márcio Jardim, atestando que era de autoria de Aleijadinho. Jardim é hoje o único especialista no Brasil que dá laudos de atribuição a Aleijadinho. Ele tem feito isso com frequência inédita. O primeiro pesquisador a levantar toda a produção de Aleijadinho foi Rodrigo Bretas. Em 1858, ele identificou 101 obras. Depois, vários pesquisadores se debruçaram sobre a produção. Nunca chegaram a números muito diferentes. O francês German Bazin identificou a existência de 113 obras em 1958. Desde 1995, Jardim já localizou 486 peças que afirma serem de Aleijadinho. Ele próprio emite os laudos de autenticidade. As peças foram publicadas num catálogo que ele lançou em 2011. Jardim afirma que não ganha dinheiro com esse trabalho e não quis conversar com ÉPOCA.

Já com o laudo de autenticidade, o São Francisco de Marcos finalmente reapareceu em público, na coleção do marchand Marcelo Coimbra, de Itu, no interior paulista. Coimbra era o dono da coleção de Aleijadinho exibida na Caixa Cultural. Era também o curador da mostra. Ele morreu há duas semanas, aos 57 anos, de um câncer no fígado. Não há informação sobre a forma como Coimbra adquiriu a obra falsa.

"Antiquários ganham dinheiro com a ignorância dos colecionadores brasileiros"
ELIAS LAYON, ARTISTA

Nos últimos anos, Coimbra ficou conhecido por descobrir obras de Aleijadinho e apresentá-las à imprensa. Em 2009, anunciou ter localizado sete obras diferentes pelo interior do país. Todas receberam o laudo de Jardim. Em 2011, encontrou uma imagem dentro de uma igreja no Peru. Em 2012, apareceu com uma nova escultura representando Cristo crucificado. Em 2013, surgiu com uma imagem de Nossa Senhora do Rosário. Neste ano, achou na própria cidade de Itu um santo negro que, segundo ele, era de Aleijadinho. “Trabalho há 45 anos nesse mercado e nunca encontrei um Aleijadinho. Essa história é no mínimo suspeita”, diz o marchand de arte sacra Manuel Guimarães. As descobertas de Coimbra foram noticiadas na imprensa. Depois de aparecer no jornal, eram incorporadas a sua coleção particular, que ele procurava expor em locais nobres. Antes da Caixa Cultural, as peças apareceram no Forte de Copacabana, do Exército brasileiro, e no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ao contrário da Caixa Cultural, o Tribunal não pagou nada pela exposição, apenas cedeu o espaço.

A exibição em museus, catálogos e no noticiário impresso são métodos usuais para legitimar obras questionáveis de Aleijadinho. Outro escultor mineiro de arte sacra, chamado Elias Layon, descobriu duas peças de sua autoria atribuídas a Aleijadinho no catálogo de Jardim. Uma delas é uma escultura de madeira representando São Joaquim. Trata-se da cópia exata que Elias fez na década de 1980 de uma imagem de Aleijadinho preservada no Museu Arquidiocesano de Mariana, em Minas Gerais. Na época, ele vendeu a peça, com sua assinatura, para um colecionador de Mariana, que não conseguiu mais encontrar. Quando ela reapareceu, atribuída a Aleijadinho, pertencia à coleção do engenheiro e empresário paulista Renato Whitaker. A escultura estava sem sua assinatura abaixo do pedestal, com o braço direito quebrado, para parecer mais antiga, e com um olho de vidro introduzido no globo ocular.

Whitaker afirma que comprou a imagem nos anos 1990 e diz não se lembrar mais quem foi o vendedor. Ele afirma que é um Aleijadinho autêntico. Também diz que já vendeu a peça há alguns anos na feira de antiguidades que acontece nos finais de semana no vão do Museu de Arte de São Paulo. Whitaker afirma não lembrar o nome do comprador. “Dificilmente haveria uma peça falsificada em minha coleção. Pode ser que houvesse peças mal atribuídas, no máximo”, diz.

“ANTIGUIDADE”
O artista Elias Layon. Sua escultura (no detalhe) está com o braço quebrado para parecer mais velha
(Foto: Leo Drumond/Nitro/ÉPOCA e reprodução)

Whitaker já foi considerado o maior proprietário de Aleijadinhos do Brasil, com 52 obras dele. Sua coleção sempre foi objeto de controvérsia. Especialistas do Iphan afirmavam que apenas quatro peças do conjunto eram autênticas. Mesmo com essa suspeita, Whitaker conseguiu expor sua coleção em espaços privilegiados. Em 2000, no Museu Nacional de Belas-Artes no Rio de Janeiro, ligado ao Ministério da Cultura. “Ele ofereceu a exposição, e achamos a ideia interessante”, diz a diretora do museu na época, Heloísa Lustosa. Entre as peças já estava o São Joaquim que Elias Layon diz ter produzido. O catálogo da mostra publicado na época trazia o selo do Iphan. Em 2002, a imagem suspeita apareceu em outra mostra organizada por Whitaker, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Segundo a assessoria da Pinacoteca, a exposição tinha o objetivo de contribuir com as discussões sobre a autoria e autenticidade das peças apresentadas e exibia documentos sobre o estágio de atribuição de cada uma delas. Em 2010, a coleção foi exibida no Museu de Arte Sacra de São Paulo, ligado à Secretaria Estadual de Cultura. Whitaker faz parte do conselho consultivo do museu. Atualmente, diz que já vendeu toda a sua coleção de Aleijadinho.

Em janeiro de 2013, o escultor Elias Layon enviou uma carta à ministra da Cultura, Marta Suplicy, denunciando a falsificação de suas peças. Um mês depois, foi contatado pelo gabinete de Marta, que prometeu providências. “Antiquários compram a imagem, envelhecem maliciosamente e depois conseguem um laudo de autenticidade. Querem ganhar dinheiro nas costas da ignorância dos colecionadores brasileiros, que infelizmente não conhecem a obra de Aleijadinho”, diz Layon.

O ministério repassou a denúncia ao Iphan, que pretende criar uma comissão para catalogar as obras de Aleijadinho. O grupo deve ser constituído ainda no segundo semestre. “Causa estranheza a quantidade de obras que surgem atribuídas a um escultor tão cobiçado no mercado como Aleijadinho. Vamos montar esse grupo para fazer algo próximo de um catálogo raisonné, que traga informações mais sólidas nesse campo”, afirma a presidente do Iphan, Jurema Machado. Pode ser uma contribuição importante – ainda que tardia.

Fonte: Época

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