sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Menino Jesus na arte: Houve verdadeira infância?

«Na pintura ocidental, o Jesus menino e adolescente, sobretudo através dos seus gestos, é já muitas vezes um adulto num corpo em formato reduzido. Em particular, não é fácil encontrar obras que retratem uma infância normal, como estamos habituados a observá-la.»

S. José, o carpinteiro (det.) | Georges de La Tour | C. 1642 | Museu do Louvre, Paris, França


Esta constatação foi proferida pelo historiador de arte francês François Boespflug, autor do ensaio “Jésus a-t-il eu une vrai enfance?” (“Jesus teve uma verdadeira infância?”, 208 pág., ed. Cerf.), que apresenta reproduções por vezes surpreendentes de obras-primas, de uma “Sagrada Família” (1342), de Simone Martini, até “Jesus aos doze anos no templo”, de Max Liebermann (1879), passando pelo “S. José carpinteiro” (1640), de Georges de La Tour.

O que o levou a escrever esta obra?
Em primeiro lugar, uma longa pesquisa infrutífera de escritos sobre a maneira como os pintores preencheram o silêncio dos Evangelhos sobre a juventude de Jesus, entre o nascimento e os 30 anos. O que fez e viveu? E sobretudo, como assumiu o facto de ser Filho de Deus? Não sabemos nada. Sendo assim, os pintores, quando retratam Jesus menino, adolescente ou na oficina de José, até à sua partida, em que é que se baseiam? Talvez em alguns textos, como os evangelhos apócrifos ou as visões de místicos. Mas sobretudo tiveram, de muitas formas, carta branca e puderam imaginar muitas coisas. Eu perguntei-me precisamente sobre que ideia desta juventude foi feita a arte pictórica ocidental.

Sublinha que são raras as representações dos comportamentos habituais de uma criança normal. O que quer dizer?
O Menino Jesus dos pintores não é quase nunca representado enquanto come, cai, anda de gatas, aprende a ler, escreve. E em paralelo há textos apócrifos que se lançaram em elaborações, não acreditadas pela Igreja, em que se explica que Jesus já sabia tudo, a tal ponto que na escola corrigia os seus mestres. Do conjunto de representações que pude consultar, emergem três escolhas prevalentes dos pintores: Jesus soube sempre tudo desde o início; Jesus teve de aprender; Jesus aprendeu a viver conservando o pressentimento daquilo que o espera. Neste último caso, portanto, é um crescimento com uma dimensão humana mas atravessada por pressentimentos proféticos.

O conjunto destas obras é vasto?

Sim, vastíssimo. As obras são inúmeras. A infância de Jesus fascinou os pintores, inclusive através dos motivos da Virgem com o Menino, da Sagrada Família, de Jesus no meio dos doutores do templo. Entre os historiadores foi muito debatida a questão da perceção da infância através dos séculos e, em particular, a presumida passagem brusca à idade adulta, atribuída na época pré-moderna. Neste sentido, ao longo dos séculos, pode por vezes intuir-se uma correlação entre o interesse da arte pela infância de Jesus e a evolução das ideias que a sociedade elaborou a propósito da infância.

Há obras ou soluções pictóricas que o surpreenderam particularmente?

Direi sobretudo as obras pictóricas, mas por vezes também da escultura, em que Jesus é apresentado enquanto dorme sobre a cruz, ou é visitado por anjos que lhe levam os símbolos da Paixão, como o chicote, a lança, a esponja. Nestas representações o observador pode interrogar sobre o facto de este Jesus não parecer poder conhecer a serenidade infantil. Isto tocou-me muito, inclusive de um ponto de vista das interrogações teológicas que essas figurações parecem explicitar. Podemos considerar essas pinturas conformes a uma séria consideração do tema da Incarnação? Em que sentido o Filho de Deus se tornou homem? É concebível uma plena humanidade se não houve uma plena infância? A nossa visão antropológica permanece a de um acesso à plena humanidade através de uma aprendizagem longa e pontuada por erros e quedas, Os pintores não terão, talvez, privado Jesus desta plenitude da infância?

A associação da infância e da Paixão numa mesma tela é um tema raro?
Não tão raro. No olhar de certos pintores a futura crucificação é já plenamente experienciada pelo Menino. Não faltam até representações do Menino ligado a uma cruz. Isto pode ser só o fruto da imaginação dos pintores.

Diante da “carta branca”, os pintores ativeram-se a alguma forma prevalente de prudência?
Os artistas mostraram, em geral, a vontade de respeitar os dogmas ou aquilo que compreendiam melhor da dimensão dogmática. Em numerosos casos, tenho a impressão de que esta prudência foi acentuada até para além de quanto provavelmente se poderia esperar deles, sobretudo no ponto da consciência que o Menino tinha da sua própria origem. A Igreja não lhes pediu necessariamente para apresentarem uma interpretação similar, mas ao mesmo tempo não a impediu. Os gestos do Menino que se mostra já como um ensinador explicitam interrogações sobre o mistério da Incarnação de que, provavelmente, os pintores não estavam, em muitos casos, plenamente conscientes. Muitas vezes, a exigência que prevaleceu foi a de criar telas destinadas antes de tudo à devoção popular. Por outro lado, a valorização da infância como modelo espiritual na pregação evangélica beneficiou muito do sucesso das representações infantis de Jesus. Num certo sentido, por isso, as palavras de Jesus encorajaram a própria valorização da sua infância na arte. Isto faz-nos refletir também sobre o lugar particular da infância no cristianismo, também em relação às outras tradições religiosas.

Daniele Zappalà
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 21.12.2015  Fonte: SNPC

"Jésus a-t-il eu une vraie enfance?"

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