sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Quem pode fazer conservação e restauro do património?


Texto de
ANTÓNIO JOÃO CRUZ

Originalmente publicado em 10/04/2014


O conservador-restaurador intervém o menos possível na obra. De outra forma, os supostos tratamentos do património são, afinal, actos de destruição.

De vez em quando, surgem na imprensa casos de intervenções que, supostamente, tinham como objectivo conservar ou valorizar o património e que, afinal, o destroem. Há ano e meio foi o Ecce Homo muito imaginativamente recriado por Cecilia Giménez em Borja; pouco depois, as pinturas murais do século XVII de uma igreja de Beja repintadas a tinta plástica por alguém com falta de vista; a seguir, a transformação dos frescos budistas de Chaoyang, do século XVIII, num friso com uma qualquer estética pop art; agora, com base na denúncia do Fórum de Conservadores-Restauradores, é um conjunto de esculturas religiosas do século XIX de Oliveira do Hospital que parece terem sido transformadas em caricaturas para desfile de Carnaval.

Nestes casos, como em muitos outros que não têm a mesma divulgação, o problema é o mesmo: por um lado, alguém que faz a intervenção sem ter a mínima competência, quer ao nível dos princípios teóricos, quer ao nível do domínio técnico, e, por outro lado, alguém que aprova uma intervenção sem que disponha da compreensão técnica, histórica e estética indispensável à gestão do património que tem a seu cargo.

De acordo com as recomendações dos organismos internacionais do sector — designadamente a Confederação Europeia de Organizações de Conservadores-Restauradores (ECCO) e a Rede Europeia para a Educação em Conservação e Restauro (Encore) —, apoiadas por organismos nacionais como a Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Portugal (ARP), um conservador-restaurador deve possuir, no mínimo, formação de nível superior especificamente na área da conservação e restauro com cinco anos de duração. Isto mesmo é exigido pelo Decreto-Lei n.º 5/2001 a quem ingressa na carreira de conservador-restaurador das instituições da administração central. No entanto, quem apenas verificar este mínimo fica limitado na sua capacidade de acção, uma vez que o Decreto-Lei n.º 140/2009 determina que as intervenções no património móvel classificado ou em vias de classificação só podem ser dirigidas por quem, após essa formação, possui cinco anos de experiência profissional.

Geralmente, intervenções como as referidas são realizadas por quem não tem esta formação, mas sim por curiosos e jeitosos que ignoram os problemas contraditórios que é necessário resolver e conciliar. O problema é catalisado por iniciativas, cada vez mais numerosas, que alimentam a ideia de que a conservação e restauro é algo que qualquer um pode fazer, sobretudo se for habilidoso, bastando frequentar, se tanto, breves acções de formação — por vezes orientadas precisamente por quem também não tem a indispensável formação. Esta situação é tanto mais grave quanto algumas destas iniciativas têm sido realizadas em instituições públicas com responsabilidades na conservação do património.

Este problema resulta de a conservação e restauro ser uma actividade que, tal como é hoje praticada, não é suficientemente conhecida fora deste mesmo meio. A ideia comum é a de que uma obra de arte, quando necessita tratamento, é sujeita a um restauro que será tanto melhor quanto mais imperceptível for e visualmente mais próximo do original deixar essa obra — algo que em casos como os referidos, no entanto, está infinitamente longe de acontecer.

Porém, em primeiro lugar, as intervenções não se limitam ao restauro, ou seja, à tentativa de restituir a funcionalidade à obra — algo que, aliás, deverá ser um último recurso. Há também a intervenção de conservação, a qual tem como objectivo apenas interromper ou minimizar os problemas de alteração activos, sem pretender eliminar as marcas e os danos que fazem parte da história da obra e a valorizam, seguindo um princípio de intervenção mínima. E há a conservação preventiva, ou preservação, que simplesmente pretende evitar o aparecimento de problemas e, idealmente, deveria ser a intervenção por excelência. Daí o uso das designações de "conservação" e "restauro" e de "conservador-restaurador", em vez das comuns designações de, somente, "restauro" e "restaurador".

Em segundo lugar, mesmo nos casos em que é necessário realizar um restauro, são mantidos os materiais originais ainda existentes — mesmo que, obviamente, não apresentem o esplendor de outrora — e a intervenção é feita de forma que, através de uma observação de pormenor, seja possível distinguir entre o que é original e o que resultou do restauro, para isso usando diferentes materiais, ainda que compatíveis, e específicas técnicas de aplicação dos mesmos. Além disso, tanto quanto possível, a intervenção será reversível, isto é, feita de modo a que no futuro, se necessário, os novos materiais possam ser removidos sem que daí resulte dano para os materiais pré-existentes.

Neste contexto, o conservador-restaurador não é um artista como era o restaurador de séculos passados, ainda que tenha de dominar as técnicas artísticas. Tem de compreender o processo de degradação a que a obra está sujeita, isolar as causas que lhe estão subjacentes, combatê-las, tomar medidas para minimizar a possibilidade de repetição dos problemas e assegurar que a obra está em condições de cumprir as suas funções, sejam elas museológicas, culturais ou outras. Além de só poder intervir depois de entender o problema que justifica a sua intervenção, tem de lidar com uma série de questões de natureza ética e histórica, no seio de um complexo processo de gestão do património. O conservador-restaurador não pode realizar qualquer trabalho artístico, nem usar os materiais de modo a expressar uma intenção artística, pois lida com obras com valor histórico, que têm marcas que simultaneamente são marcas de degradação e marcas da história. Ele pretende minimizar os problemas de degradação, mas eliminar o menos possível as marcas da história — o que frequentemente é algo contraditório. O conservador-restaurador intervém o menos possível na obra, minimizando as marcas que nela deixa, evitando que a sua intervenção possa causar outros danos à obra, de imediato ou no futuro, permitindo que essa mesma obra e a sua história possam ser convenientemente usufruídas no presente e transmitidas às gerações futuras. Além dos conhecimentos específicos da área da conservação e restauro, são para isso indispensáveis os conhecimentos das áreas de materiais, química, física, história da arte ou história das técnicas, entre outras. De outra forma, os supostos tratamentos do património são, afinal, actos de destruição.

*Director do Mestrado em Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar

Fonte: Publico

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