terça-feira, 27 de março de 2012

Ladrões de anjos

Por Marcos de Moura e Souza | De Belo Horizonte

Eugenio%20Savio%2FValor  Anjo adorador do século XVIII de igreja em Belo Horizonte, uma das peças recuperadas; são 697 itens desaparecidos
Bastam duas ou três pessoas. Uma delas se disfarça de turista e entra na igreja com uma câmera fotográfica. Mostra-se encantada com a decoração barroca e com as antigas imagens de santos. Fotografa tudo e sai sem deixar nome, RG ou telefone. Não há livro de registros na entrada. As fotos vão formar um catálogo que logo estará nas mãos do dono de um antiquário em São Paulo ou no Rio. 

O comerciante escolhe as peças que julga mais vendáveis. O "turista", então, volta com os comparsas à igrejinha, arromba-a sem dificuldade ou entra de novo como visitante, ludibria o zelador e adeus. Mais uma igreja de Minas Gerais é furtada para abastecer o comércio ilegal de arte sacra no país.

A cena se repete em igrejas e capelas pelo interior de Minas - muitas delas na zona rural e em lugarejos afastados de tudo. Minas já tem um triste histórico de furtos de imagens sacras. São ao todo 697 desaparecidas oficialmente - o número real pode ser dez vezes maior, já que ainda há muita sub-notificação, segundo autoridades. É o Estado recordista em casos de roubo em igrejas no país.

O Ministério Público em Belo Horizonte tem registros de furtos dos anos 1960 e 1970 - de peças que até hoje não foram encontradas. Um caso clássico nunca desvendado é o sumiço em 1973 de 15 peças da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto. Imagens, documentos esquecidos do Vaticano, missais, objetos antigos de celebração: tudo que tenha valor histórico e agrade a colecionadores entra no alvo dos ladrões. Há alguns anos, um grupo chegou ao cúmulo de surrupiar as portas de uma igreja na cidade de Prados.
Muitas das gangues atualmente têm operado com um mesmo sistema. "Eles estão vindo para Minas, fingem-se de turistas, fotografam as peças para depois fazer um 'book' que vão levar para os antiquários", diz o promotor público Marcos Paulo de Souza Miranda. Segundo Miranda, que é coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, os furtos são seletivos e encomendados por especialistas que conhecem o valor das peças.

Nos bandos há em geral um integrante que além de roubar tem noções de arte sacra. Uma quadrilha desbaratada recentemente em Minas contava com um médico amante de arte entre os criminosos. Os ladrões sabem para onde apontar. Nunca levam peças de gesso, por exemplo. Em geral, seus alvos são peças eruditas e de culto coletivo, de 60 cm, 70 cm ou até 1 metro de altura.

Se uma imagem desse tipo estiver em bom estado de conservação, com a pintura original, se for do século XVIII, de um autor renomado - como Aleijadinho, Francisco Vieira Sevas, Francisco Xavier de Brito ou Valentin Corrêa Paes -, se for rica em detalhes e beleza, seu preço no mercado de arte pode variar de R$ 100 mil ou a R$ 200 mil. E não se trata da quantidade de ouro ou prata incrustados na peça.

Em fevereiro, foram ladrões camuflados de turistas que aparentemente levaram cinco imagens sacras da igreja matriz de Santo Antônio, em Itacambira, município de 5 mil habitantes no norte de Minas. A polícia apurou que, às vésperas do furto, algumas pessoas que pareciam turistas fotografavam o interior da igreja durante um velório.

"Há um acervo significativo de peças sacras valiosas em igrejas da zona rural. Com a expansão do turismo, elas acabam entrando no circuito. A notícia do que há dentro das igrejas se espalha e muitas vezes isso acaba chegando a pessoas mal-intencionadas", diz Mônica Eustáquio Fonseca, professora de história da arte e arquitetura da Escola de Arquitetura e Urbanismo da PUC-MG. Ela também é a coordenadora do inventário do patrimônio cultural da Arquidiocese de Belo Horizonte. Em todo o Estado, são cerca de 15 mil peças sacras só em igrejas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

O Ministério Público aperta o cerco aos criminosos. A equipe de Miranda tem trabalhado constantemente em operações em parceria com polícia e autoridades em São Paulo, Rio e também Salvador. O resultado até agora foi o resgate de cerca de 550 peças que haviam sido subtraídas de igrejas de Minas. Os itens encontrados estão em Belo Horizonte; parte no Museu Mineiro, parte no Memorial da Arquidiocese. 

Miranda diz que pretende organizar uma exposição com essas imagens recuperadas. Ainda falta patrocínio.
Rastrear peças roubadas em Minas é um trabalho que exige conhecimento de arte, tecnologia e investigação. A partir de uma denúncia, autoridades seguem o fio da meada e muitas vezes vão parar na porta de um antiquário num bairro elegante paulistano ou carioca. Miranda viaja com um notebook equipado com um software que reúne informações de todas as imagens que tiveram seu roubo em Minas registrado. Se a peça bate com o acervo policial, o flagrante é feito. Quando não há registros oficiais de que aquela peça pertencia a tal igreja, párocos entram em cena para reforçar o argumento dos promotores diante da Justiça; às vezes, os processos incluem fotos de casamento ou procissões nas quais se vê a imagem furtada.

Mas como quem entra no ramo do comércio ilegal de arte não gosta de perder dinheiro, o que não faltam são subterfúgios. Aliciados por grupos de criminosos, restauradores têm adulterado imagens roubadas para dificultar sua identificação. Foi o que ocorreu há alguns anos com uma imagem de Nossa Senhora encontrada num antiquário. O artista que a entalhou colocou anjinhos sorridentes a seu pés. Quando a peça foi encontrada, eles estavam tristonhos. Detalhe suficiente para atrapalhar o trabalho de comprovação de que a santa era a mesma que tinha sido furtada. Outro caso recente: os dedos de uma Nossa Senhora foram quebrados e refeitos numa posição diferente. O Ministério Público em Minas só consegue comprovar que a peça foi adulterada quando a submete a um exame de raio-x. O remendo então fica evidente.

Mas às vezes mesmo parecendo evidente aos promotores que aquela peça pertence à igreja, a briga com o colecionador vai para a Justiça e ali se alonga ad eternum. Devotos de Nossa Senhora do Rosário que freqüentam a capela dedicada a ela em Pedro Leopoldo conhecem bem uma história assim. Na década de 1980, a imagem da santa - que tem cerca de um metro - desapareceu. Anos depois, as autoridades de Minas chegaram até seu novo dono. "A imagem está com um empresário de São Paulo. Já houve uma determinação judicial para que devolvesse a peça, mas ele tem advogados e vem conseguindo adiar a decisão. A peça é da igreja. Eu mesma fiz um parecer mostrando isso", diz a professora Mônica Eustáquio.

"Só existe roubo em igreja porque tem intermediários e colecionadores inescrupulosos", diz Olinto Rodrigues dos Santos, pesquisador do Iphan baseado na unidade de Tiradentes. A frustração para as autoridades é que no Brasil a pena para quem rouba patrimônio cultural é branda. "O Brasil é um dos poucos países onde não há pena diferenciada para roubo de patrimônio cultural. Se alguém entra numa igreja e rouba uma imagem antiga da padroeira ou a enceradeira está sujeito à mesma pena", diz Miranda. A pena é de dois a oito anos. Mas - nos casos em que o ladrão é mesmo condenado - em dois anos deixa a prisão.

de Valor Econômico

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